domingo, 31 de outubro de 2010

Steven Wedgeworth : Davenant e o Calvinismo

John Davenant foi talvez o delegado mais influente no Sínodo de Dort (especialmente pelo que ele manteve fora da versão final dos Cânones). Grande parte de sua influência foi examinada no meu artigo “Os Cânones de Dort e a Complexidade de Ser Reformado”, mas é certamente o caso que ele continua sendo uma figura negligenciada. 


Eu nunca tinha ouvido falar dele até que comecei meus estudos sobre Dort, e como eu pesquisei um pouco da literatura secundária, percebi que alguns comentaristas já questionaram se ele devia ou não ser considerado um calvinista (por causa de sua posição moderada e seu contraste com o high calvinismo). 

G Michael Thomas se dirigiu às afirmações de Robert Godfrey sobre Davenant no livro de Thomas “The Extent of the Atonement”, mas eu gostaria de abordar esta questão um pouco por mim mesmo, contrastando Davenant com John Overall, um homem que teve grande influência sobre Davenant, mas que também foi um homem cujo ponto de vista histórico foi muito diferente do de Davenant.


Davenant escreveu um extenso tratado sobre a extensão da expiação, em parte para explicar os Cânones de Dort. Esse foi a sua A Dissertation on the Death of Christ. Ele foi originalmente incluído no seu comentário de Colossenses, mas algumas reimpressões modernas o tem removido. Neste tratado, Davenant afirma que a morte de Cristo estabeleceu a nova aliança e que a morte de Cristo é suficiente por todos os homens, mas somente pelos eleitos eficazmente. A dupla abordagem de Davenant à morte de Cristo, que consistia em uma expiação universal geral e uma expiação particular eficaz, não era original para ele, no entanto, e como Peter White, fez notar, Davenant foi diretamente influenciado pelo Bispo John Overall (Predestination, Policy and Polemic, pg. 191). Os tratados de Overall sobre a expiação podem ser encontrados em The British Delegation and the Synod of Dort (pg. 64-92) de Anthony Milton..

O Bispo Overall certamente não foi considerado um calvinista convicto. White mostra em seu livro que o Arcebispo Abbott certamente teria sido menos favorável a Davenant, se soubesse da influência de Overall sobre ele. É também evidente nas cartas de Overall que ele mesmo não abraça o título de "calvinista", mas, ao invés, prefere descrever a si mesmo como um membro da Igreja da Inglaterra, que, segundo ele, traça um caminho intermediário entre a tradição de longa data da Igreja Católica e os novos desenvolvimentos da Reforma. Um bom exemplo pode ser visto em seu On the Five Articles disputed in the Low Countries . Em relação à extensão da expiação, ele escreve:

Os Contra-Remonstrantes, por excluir um geral e condicional decreto, mantem um único, particular e absoluto decreto, referente a certos indivíduos selecionados da raça humana, e por meio da graça eficaz e irresistível do Espírito Santo, a estes apenas, sendo todo o resto rejeitado e condenado por um decreto absoluto. Este é o juízo de Zwingli, Calvino e os puritanos, desconhecido para todos os antigos Pais, Agostinho e seus seguidores, e rejeitado pela maioria dos romanistas, por todos luteranos, e muitos outros

A Igreja da Inglaterra, sustenta um caminho intermediário, unindo um decreto absoluto particular (não da presciência da fé humana ou da vontade, mas do propósito da divina vontade e graça) de libertar e salvar aqueles a quem Deus escolheu em Cristo, com uma geral e condicional vontade, ou com uma geral promessa evangélica: o ensinando que as promessas divinas devem ser abraçadas da forma como elas são geralmente colocadas para nós nas Sagradas Escrituras, e que essa vontade de Deus deve ser seguido por nós, a quem tem claramente revelado na palavra, a saber:

que Deus deu Seu filho pelo mundo ou por toda a raça humana; que Cristo ofereceu a si mesmo como um sacrifício por todos os pecados do mundo todo; que Cristo redimiu toda a raça humana; que Cristo ordenou que o Evangelho deve ser pregado a todos; que Deus quer e ordena que todos ouçam e creiam nele; que Ele tem estabelecido graça e  salvação por todos Nele; que é uma verdade infalível na qual não pode haver nenhum erro, e que se fosse de outro modo os apóstolos e os outros ministros do Evangelho que pregam isso seriam falsas testemunhas de Deus, e fariam de Deus um mentiroso.(citado de Milton pg. 64-65)

Esta seleção é complexa, pois faz pelo menos duas reivindicações. A afirmação doutrinária de Overall é realmente muito boa e representa quase exatamente a posição de Davenant, bem como a interpretação da delegação britânica dos Cânones de Dort encontrados em seu Collegiat Sufráge (ver Milton pag 226-293). Este tipo de ensino pode ser visto nos teólogos Heidelberg, assim como nos norte-americanos do século 19. E isso, certamente, dentro dos limites do "calvinismo".

No entanto, Overall se perde exatamente neste ponto histórico. Ele afirmou que "o juízo de Zwingli, Calvino e os puritanos" é o singular aspecto particular da expiação, pondo-os no campo dos high calvinistas entre os Contra-Remonstrantes e em oposição à Igreja da Inglaterra. Overall também afirma que esta posição era "desconhecida por todos os antigos Pais, mesmo Agostinho." Assim, mesmo com o seu real conteúdo doutrinário dentro do escopo do pensamento reformado, a auto-identificação de Overall é claramente fora dele.

Este é o lugar onde Davenant é distinto, e é uma área que pode lançar alguma luz sobre como classificá-lo, bem como ao calvinismo inglês em geral. Enquanto em básica concordância com a dupla abordagem de Overall para a expiação, Davenant sempre manteve que essa posição também era a de Calvino. De fato, Davenant vai ainda mais longe e proclama que essa posição é a posição dominante da Igreja Católica ao longo dos tempos. Isso não é o "caminho intermediário" de Overall, mas sim uma afirmação de concordância e continuidade entre Calvino, a Igreja da Inglaterra, e a Igreja Cristã através dos séculos.

Davenant inicia sua “Dissertation on the Death of Christ (doravante DDC), com um capítulo intitulado "Sobre a Origem da Controvérsia." Ele não começa com Arminius ou Gomarus, mas, ao invés, com os Pais da Igreja. Ele explica as respostas de Prosper aos Gallicans que se opunham a Agostinho, e demonstra que "Prosper satisfez essas acusações, não ao afirmar que Cristo sofreu somente pelos eleitos, mas mostrando onde se evidencia que a paixão de Cristo é aproveitada e salva somente aos eleitos; ou seja, porque somente esses por meio do benefício da graça especial obtem a fé perseverante, pela qual são habilitados a aplicar para si a morte de Cristo "(DDC pg 321.).

Davenant também tira um momento para refutar Grevinchovius e William Ames em relação ao seu uso de “Faustus of Ries”, a fim de ensinar que Agostinho se opôs a uma expiação geral. Ele não diz que estes homens são os verdadeiros agostinianos, e que ele quer, ao invés, traçar um caminho intermediário, mas sim que eles estão enganados:

"Grevinchovius cometeu um erro grosseiro, quando pensou que a opinião acima mencionada era para ser atribuída a Pelágio. Se ele tivesse olhado para os livros de Faustus, poderia facilmente ter percebido que aquilo não foi escrito contra os pelagianos, mas contra aqueles que atribuem tudo a divina graça e misericórdia, ou seja, contra Santo Agostinho, Prosper, e o resto dos ortodoxos, contra quem ele balbucia serem “como distintos da raça de sectários, mas iguais aos pelagianos em impiedade" (Faustus, lib. i. cap. 3 e 6) "(DDC 325). 

Aqui temos Davenant se opondo a William Ames em um ponto, mas ele não se limitou a dizer que Ames também é um pouco calvinista, mas sim que Ames está errado sobre a história. Davenant permaneceria com Agostinho, Prosper, e, como veremos, Calvino e a tradição Reformada.


Na pág. 334 do DDC, Davenant começa a mostrar a continuidade entre os mestres reformadores e a tradição medieval. Ele menciona os Sínodos de Mentz e Valence e suas participações na disputa entre Gottschalk e Hincmar. Ao contrário de certas apresentações históricas de Gottschalk como um proto-calvinista, Davenant sustenta que a Igreja não concordou tanto com Hincmar quanto com Gottschalk, preferindo, ao invés, permitir a distinção entre a suficiência universal e a eficiência particular. Davenant declara que isso continuou através dos escolásticos, e, finalmente, que "os Doutores da Igreja Reformada também, desde o início, falaram de tal maneira sobre a morte de Cristo, que eles não ofereceram nenhuma ocasião para reavivar a contenda" (pág. 336) . Ele acrescenta: "Porque eles ensinaram, que ela foi proposta e oferecida a todos, mas apreendida e aplicada para a obtenção da vida eterna, somente por aqueles que crêem".

Depois de traçar essa linha de continuidade com a patrística, com os medievais, e com a Igreja Reformada, Davenant passa citar individuos. Na pág. 337, encontramos os nomes de Melanchton, Calvino e Bullinger. Conforme nós lemos, vemos Musculus (338), Zanchius (339), Pareus (355-356), e Bucer (547). Talvez possa ser argumentado que Davenant estava incorreto em sua interpretação desses autores, mas isso deixa claro que ele não sustenta a opinião de Overall. Ao contrário, ele viu seu próprio ponto de vista estando em harmonia com Calvino e os reformadores. Davenant afirma que sua posição é a da Igreja da Inglaterra, representada nos 39 artigos, e que esta posição é harmoniosa tanto com a Igreja Reformada, bem como com a igreja católica e os apóstolos.

Uma forte ilustração da confiança de Davenant sobre a autoridade dos Reformadores é vista na sua citação de David Paraeus, um estudante muito conhecido de Ursinus. Davenant escreve:

"Por último, aqueles que estão mais acostumados a limitar a morte de Cristo não podem negar isso. O reverendo e muito erudito Paraeus, em seu juízo sobre o segundo artigo dos Remonstrantes, o qual foi transmitido para o Sínodo de Dort, tem estas palavras: “A causa e o motivo da paixão de Cristo foi a sustentação da ira de Deus excitada contra o pecado, não de alguns homens, mas de toda a raça humana; de onde resulta que a totalidade do pecado e da ira de Deus contra ele foi suportado por Cristo, mas que a totalidade da reconciliação não foi obtida ou restaurada a todos” (Act. Sínodo. Dordrect. pg. 217). A força do argumento é que aquele que quis e ordenou que Cristo, o Mediador, sustentasse a ira de Deus devido a pecados não de algumas pessoas, mas de toda a raça humana, quis que essa paixão de Cristo fosse um remédio aplicável para a raça humana, isto é, para cada homem, e não apenas para algumas determinadas pessoas; o poder supremo, no entanto, sendo deixado para Si, e a plena liberdade de distribuir e aplicar esse mérito infinito de acordo com a sua secreta vontade". DDC pg. 355-356

Davenant ensina aqui a vontade salvifica universal de Deus ao enviar Cristo, assim como a secreta vontade para aplicar os benefícios da expiação aos eleitos. Para esse fim, ele não se contenta com passagens controvertidas da Escritura, nem mesmo com Calvino, embora ele o use em outros lugares, mas, ao invés, Davenant emprega uma declaração direta e clara de David Pareus e ainda mais, a citação está numa carta que Pareus escreveu para o Sínodo de Dort expressamente sobre a questão da extensão da expiação. Não há espaço para objetar que Davenant está tomando a citação fora do contexto ou que está errada a sua interpretação. Se Davenant não é reformado, então Pareaus também não, assim abrindo um retrocesso assustador, já que Paraeus foi muito representativo dos professores em Heidelberg. Paraeus faz ainda mais no comentário de Ursinus sobre o Catecismo de Heidelberg, que foi reproduzido pela P & R (embora eles falhem em não citá-lo). Observar essa conexão entre Davenant e Paraeus é essencial para a compreender o lugar de Davenant no espectro teológico.

Vemos que é possível aplicar os títulos de "calvinista" e "reformado" a John Davenant em boa consciência e com confiança no registro histórico. Seus escritos, portanto, servem como um testemunho da legitimidade da posição moderada, bem como uma poderosa defesa da concordância do calvinismo com a tradição católica. A este propósito Davenant é especialmente importante para os tempos modernos.

Fonte: http://wedgewords.wordpress.com/2008/02/05/davenant-and-calvinism/
Tradutor:  Emerson Campos Pinheiro.