domingo, 28 de fevereiro de 2010

Charles Hodge(1797-1878): Satisfação Penal e a Satisfação Pecuniária - Parte 1

1)A palavra satisfação é aquela a qual por eras tem sido geralmente usada para designar a obra especial de Cristo na salvação dos homens. Na teologia em Latim a palavra é “satisfactio”, na alemã escreve-se “Genugthun,” que equivale etimologicamente a exata, “ “the doing enough.”.

Por satisfação de Cristo compreende-se tudo que Ele tem feito para satisfazer a demanda da lei e da justiça de Deus no lugar e em favor dos pecadores. Essa palavra tem a vantagem de ser precisa, compreensiva, e geralmente aceita, e deve-se, portanto, aderir a ela. 

Há, no entanto, dois tipos de satisfação, as quais diferem essencialmente em sua natureza e efeitos, não devendo ser confundidas. Uma é a pecuniária ou comercial, a outra, penal ou forense.


Quando um devedor paga a demanda de seu credor por completo, ele satisfaz seu clamor, e é inteiramente livre de qualquer demanda além. Nesse caso a coisa paga é a precisa soma devida, nem mais nem menos. Isso é uma simples matéria de justiça comutativa; um quid pro quo; tanto por tanto. Não pode haver condescendência, misericórdia, ou graça por parte do credor que recebe o pagamento do débito.Não importa a ele por quem o débito é pago, quer pelo devedor em si, ou por alguém em seu lugar; porque o clamor do credor é simplesmente sobre o montante devido e não sobre a pessoa do devedor.

No caso de crimes a questão é diferente. A demanda é, então, sobre o transgressor. Ele em si mesmo é responsável para a justiça. Substituição em cortes humanas está fora de questão. O ponto essencial em matéria de crime, não é a natureza da penalidade, mas quem deve sofrer. A alma que pecar, essa morrerá. E a penalidade não necessita ser, e muito raramente é, da natureza da injúria infligida .Tudo que é requerido é que deve ser um equivalente justo. Por um assalto, pode ser uma multa, por um roubo, aprisionamento; por traição, banimento, ou morte. No caso de um substituto ser providenciado para tomar a penalidade no lugar do criminoso, isso seria para o transgressor uma questão de pura graça, reforçada na proporção da dignidade do substituto, e a gravidade do mal do qual o criminoso é libertado.

Outra diferença importante entre a satisfação penal e a pecuniária, é que uma ipso facto libera. No momento que o débito é pago o devedor está livre, e isso completamente. Nenhum atraso pode ser admitido, e nenhuma condição pode ser anexada para sua liberdade. Mas no caso de um criminoso, como ele não clamou ter um substituto para tomar seu lugar, se alguém for providenciado, os termos nos quais os benefícios de sua substituição devem provir para o principal, são matérias de acordo, ou pacto, entre o substituto e o magistrado que representa a justiça. A liberdade do transgressor pode ser imediata, incondicional e completa, ou pode ser deferida, suspensa sobre certas condições e seu beneficio gradualmente concedido.

Como a satisfação de Cristo não foi pecuniária, mas penal ou forense; uma satisfação pelos pecadores, e não por aqueles que devem um certo montante de dinheiro, segue-se que não é consistente um exato quid pro quo , tanto por tanto. Isso, como já observado, não é o caso mesmo entre os homens. A penalidade por roubo não é a restituição da coisa roubada, ou seu exato valor pecuniário. Ela é geralmente algo de uma natureza inteiramente diferente. Ela pode ser multa ou aprisionamento. A punição por um assalto não é infligir sobre a pessoa do transgressor o mesmo grau de injúria. Assim também para difamação, quebra de confiança, traição, e todas as outras transgressões criminosas. A punição para a transgressão é algo diferente do mal que o transgressor cometeu. Tudo que a justiça demanda na satisfação penal é que ela deve ser uma satisfação real, e não meramente algo que graciosamente se aceita como tal.

Ela pode tomar uma adequada proporção do crime cometido. Ela pode ser diferente em espécie, mas deve se de inerente valor. Multar um homem com alguma quantia monetária por cometer um homicidio seria uma farsa; mas morte ou aprisionamento pela vida seria uma real satisfação para a justiça. Tudo, portanto, que a Igreja ensina quando diz que Cristo satisfez a divina justiça pelos pecados dos homens é que o que Ele fez e sofreu foi uma compensação realmente adequada pela penalidade remitida e pelos benefícios conferidos. Seus sofrimento e morte foram adequados para realizar todas as finalidades designadas para a punição dos pecados dos homens. Ele satisfez a justiça.

Ele executou de forma consistente com a justiça de Deus que os pecadores devem ser justificados. Mas Ele não sofreu nem em espécie nem em grau o que os pecadores devem sofrer. Em valor, seu sofrimento foi infinitamente transcendente ao deles. A morte de um eminente bom homem compensaria a aniquilação de um universo de insetos. De forma que a humilhação, sofrimento e morte do eterno Filho de Deus transcende imensuravelmente em força e poder a penalidade com a qual o mundo de pecadores teria sofrido.


2) Enquanto os Protestantes e a Igreja geralmente tem defendido na doutrina que a satisfação de Cristo, por causa da dignidade de sua pessoa e natureza e do grau de seu sofrimento foi e é infinitamente meritório, absolutamente perfeito de força intriseca, e completamente eficaz na aplicação para todos os pecados dos crentes, os Scotists na Idade Média, e depois deles Grotius e os Remonstrantes, negaram que a obra de Cristo tem inerente valor para satisfazer a divina justiça, mas diz que é tomado como uma satisfação, acceptatione gratuita…

É óbvio que a objeção apresentada no texto acima surge de confundir satisfação pecuniária com satisfação legal ou judicial. Há uma analogia entre elas, e, portanto, sobre o fundamento desta analogia é correto dizer que Cristo assumiu e pagou nosso débitos. A analogia consiste, primeiro, nos efeitos produzidos, a saber, a certeza da libertação daqueles por quem a satisfação é feita; e em segundo lugar, que um equivalente real está pago; e, em terceiro, que em ambos os casos a justiça requer que o libertador do obrigado tome lugar. Mas, como nós temos já visto, os dois tipos de satisfação diferem, primeiro, que na satisfação penal a demanda não é por algum especifico grau ou tipo de sofrimento.


3)Resgate como Metáfora



A segunda objeção do Dr Beman é que o sistema ao qual ele se opõe destrói “toda a misericórdia em Deus, o Pai, na salvação dos pecadores, porque eles representam Deus como totalmente desinclinado a exercer de compaixão, até cada jota e til da maldição legal foi infligida. Sobre o mesmo principio, graça ou perdão no resgate do pecador do pagamento futuro, estaria fora de questão; por que graça, ou perdão, ou favor, podem aqui ser na dispensa do devedor, cujo demandante (devedor?) tem sido cancelada até o último centavo?" p. 122 .

Essa objeção é o grampo desse livro. Na página 100, ele representa-nos como ensinando que “o Filho de Deus suportou o exato montante de sofrimento devido, sobre o principio legal, pelos pecadores”. Na página 107, ele diz, “o montante do sofrimento de Cristo deve conseqüentemente ser o mesmo que todo o sofrimento reunido que era devido na eterna condenação daqueles que são salvos pelo seu mérito.... A agonia a qual ele sofreu foi mera equivalência para a miséria sem fim daqueles que  são  salvos pela interposição de seu favor”.

Na página 146, ele diz, “Se alguma alma tivesse de ser salva pela expiação, Cristo deveria suportar um montante de sofrimento igual ao sofrimento que envolveria aquela alma na eterna condenação; e se uma centena tivesse de ser salva, uma centena de vezes esse montante, e na mesma proporção por um grande número que tivesse de ser resgatado da perdição e exaltado para a glória. Por este esquema há objeções insuperáveis”. É verdade, mas quem toma tal esquema?

O Dr Beman atribui isso a todos que crêem na expiação, e não adotam seu esquema, pois ele diz que são apenas dois. Essa doutrina, que o sofrimento de Cristo somava o montante de sofrimento daqueles que teriam de ser salvos, que ele suportou tanto por tantos, não é achado em nenhuma confissão das igrejas protestantes nem nos escritos de algum teólogo de nível, nem em autoridades reconhecidas de alguma igreja da qual nós temos algum conhecimento. A objeção inteira é uma deturpação grosseira e indesculpável. 

De uma maneira mais moderada foi tomada pelos Socinians, e repelida pelos escritores daquele tempo e das eras seguintes. De Moor é geralmente reconhecido como o teólogo de mais autoridade entre as igrejas da Holanda, e Turrettin é admitido ser um dos mais rigorosos da escola de Genebra, e ambos respondem essa calúnia, por negar que, de acordo com sua doutrina, há alguma necessidade de assumir que o sofrimento de Cristo foi equivalente ao sofrimento de seu povo. Assim Turretin, depois de citar longamente a objeção de Socinus, responde, 

1) Por demonstrar que as Escrituras ensinam que a morte de Cristo fez uma satisfação para todos; assim como que por um pecado de Adão, muitos foram feitos pecadores, assim também, pela justiça de Cristo, muitos foram feitos justos.

2) Por insistir na distinção entre a satisfação pecuniária e a satisfação penal. Um pouco de dinheiro na mão de um rei não é de menos valor que na mão de um camponês, mas a vida de um rei é de mais valor que de um camponês, e de um comandante é frequentemente trocada por muitos soldados.

3) Ele diz que os adversários se esquecem que Cristo é Deus, e portanto, apesar de seu sofrimento não poder ser infinito, uma vez que eles foram suportados por sua natureza finita, eles eram de infinito valor em virtude da infinita dignidade de sua pessoa. Pecado, ele diz, é um mal infinito, porque é cometido contra um Deus infinito, através do ato de uma natureza finita. Assim os sofrimentos de Cristo, os quais suportou em sua natureza humana, é de valor infinito devido a dignidade de sua pessoa.

Dr Beman, sobre este raciocínio, frequentemente objeta que nós degradamos a expiação em uma mera transação comercial, um pagamento de um débito, o qual, devido a natureza do caso, exclui a idéia de livre remissão. 

Nosso primeiro comentário sobre essa objeção é que a Escritura usa a mesma figura, e, portanto, deve ser correto usá-la. Quando é dito que Cristo comprou a igreja com seu próprio sangue, que nós somos redimidos não com coisas corruptíveis como prata ou ouro, mas com o precioso sangue de Jesus, tal linguagem deve significar algo. Em cada metáfora há um ponto de comparação; a idéia essencial envolvida na figura, deve ser encontrada no assunto a ser ilustrado. Comprar é adquirir, e adquirir por ter dado ou feito algo que assegura uma titularidade da coisa adquirida. Quando é dito que Cristo comprou a igreja, é certamente entendido que ele a adquiriu, que ela é dele, e que por sua morte ele tem assegurado a titularidade dela, baseada na justiça e promessa de Deus.  

Isso não torna a redenção uma transação comercial, nem implica que não há pontos essenciais de divergência entre adquirir por dinheiro e adquirir pelo sangue. Por isso nosso segundo comentário é que, se o Dr Beman tivesse tomado alguma obra elementar sobre teologia, ele encontraria a distinção entre satisfação pecuniária e satisfação penal claramente apontada, e a satisfação de Cristo demonstrada como sendo a última, e não a do primeiro tipo.

1. Em uma, a demanda é sobre a coisa devida; no outro caso, é sobre a pessoa do transgressor;

2. O credor é obrigado a aceitar o pagamento do débito, não importa quem ou por quem é oferecido; já no caso de um crime ou pecado, o soberano não é obrigado nem a prover um substituto, nem a aceitar a oferta de alguém de substituir o acusado. Se ele faz uma coisa ou outra é matéria de graça.

3. Por isso a satisfação penal não ipso facto libera; a aceitação é uma matéria de acordo ou pacto, e os termos desse pacto dependem das partes. 

O dr Beman comete um lapso em uma importante verdade quando ele diz que “Cristo sofreu pelo pacto”,p. 98. O que esse pacto é, nós aprendemos da Escritura, e da maneira como ele é executado. A Bíblia ensina que, em conformidade com esse pacto, os méritos de Cristo não aproveitam para o beneficio de seu povo imediatamente; seus filhos permanecem debaixo de condenação tanto quanto os outros até que eles crêem; e quando eles crêem, eles recebem apenas os primeiros frutos de sua herança, eles são imperfeitamente santificados, e estão ainda sujeitos a muitos males; mas estando em um estado justificado, seus sofrimentos são castigos e não punições, isto é, eles são designados para seu próprio aperfeiçoamento e não para satisfazer a justiça.

A satisfação de Cristo, portanto, sendo por causa do pecado e por meio do sofrimento, é expressamente e formalmente declarado não ser da natureza da satisfação pecuniária. Charles Hodge, “Beman on the Atonement,” in Essays and Reviews, in (New York, Robert Carter & Brothers, 1857), 163-6.


Fonte:http://calvinandcalvinism.com/?p=301

Traduzido por Emerson Campos Pinheiro. Ao utilizar esse texto devem ser citados a fonte e o tradutor.