domingo, 1 de setembro de 2013

I João 2:2 e o Argumento contra a Expiação Universal






Alguns particularistas tem feito uso do seguinte argumento contra a expiação universal:



Em I João 2.2, é dito que Cristo é a "propiciação" (hilasmos) pelos pecados do mundo. Como a palavra propiciação significa aplacar a ira, e no caso a ira de Deus, e em Apocalipse é dito que Cristo morreu antes da fundação do mundo, então antes que houvesse mundo Deus teve sua ira aplacada em relação aqueles por quem Cristo morreu. Sendo assim não é possível que “mundo” inclua os não-eleitos e Cristo tenha morrido por eles, pois textos como Ef 2.3, Cl 3.6, 1Ts 1.10, 2.16, 5.9 ensinam claramente que Deus está irado e irá derramar Sua ira sobre eles.



O primeiro problema com esse argumento é de acordo com ele Deus não estaria irado com os eleitos que ainda estão em um estado de incredulidade. Essa ideia é totalmente contrária ao calvinismo ensinado nas confissões de fé reformadas:

1)Dort:


"1:1 Todos os homens pecaram em Adão, estão debaixo da maldição de Deus e são condenados à morte eterna. [...] 

1:4 A ira de Deus permanece sobre aqueles que não crêem neste Evangelho. [...] 

Erro 2:5 Todas as pessoas têm sido aceitas por Deus, de tal maneira que estão reconciliadas com Ele e participam da aliança. Por isso ninguém está sujeito à condenação ou será condenado por causa do pecado original. Todos estão livres da culpa deste pecado. 

Refutação 2:5 Esta opinião contraria a Escritura* que ensina que nós somos "por natureza filhos da ira" (Ef 2:3)" Para mais clique aqui.


2)CFW:


"6:6. Todo o pecado, tanto o original como o atual, sendo transgressão da justa lei de Deus e a ela contrária, torna, pela sua própria natureza, culpado o pecador e por essa culpa está ele sujeito à ira de Deus e à maldição da lei e, portanto, sujeito à morte com todas as misérias espirituais, temporais e eternas. 

Pergunta 19 (Breve Catecismo). Qual é a miséria do estado em que o homem caiu?



R. Todo o gênero humano pela sua queda perdeu comunhão com Deus, está debaixo da sua ira e maldição, e assim sujeito a todas as misérias nesta vida, à morte e às penas do Inferno para sempre". Para mais clique aqui.

Pode-se questionar também se a mesma objeção não poderia ser levantada também em relação aos eleitos, pois as Escrituras descrevem os eleitos como debaixo da ira de Deus. Abaixo seguem duas amostras disso:



"Pois tu não és Deus que se agrade com a iniquidade, e contigo não subsiste o mal. Os arrogantes não permanecerão à tua vista; aborreces a todos os que praticam a iniquidade". (Salmo 5:4,5)



O eleito antes de sua conversão é alguém que pratica a iniquidade? Se sim, então ele é alguém que é odiado por Deus, isto é, alguém com quem Deus está irado.


"No tocante a Deus, professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são abomináveis, desobedientes e reprovados para toda boa obra". (Tito 1:16)

Existem eleitos que já professaram conhecer a Deus antes de sua real conversão? Se sim, então esses são odiáveis (abomináveis) a Deus.

O segundo problema no argumento é que ele tenta subordinar a exegese do texto à sua teologia. Ele apresenta sua dificuldade de conciliar o seu sistema teológico e o restante das Escrituras com um sentido de “mundo” em I João 2:2 que inclua os não-eleitos como um impedimento para interpretá-lo dessa forma. Ora, não se pode escolher ou rejeitar um sentido de um texto simplesmente por não lhe ser conveniente ou por ser incapaz de, no momento, conciliar o mesmo com o restante das Escrituras e com seu sistema. Como disse Eric Svendsen uma vez, seria preferível viver com uma tensão teológica para que “a verdade exegética tome lugar, do que viver com a tensão exegética de ter de adaptar difíceis passagens a uma crença a priori para satisfazer questões teológicas”.

Quando João fala no texto de “nossos pecados” e dos pecados “de todo o mundo”, ali “nossos” se refere aos leitores e por extensão aos crentes, e “mundo” se refere ao mundo da humanidade apóstata. Se prestarmos atenção perceberemos que não há um dilema aqui e que o sentido é compatível com o uso que João faz de mundo em outros lugares, especialmente no paralelo mais próximo do uso de “todo o mundo” em I João 5:19. Repare que a mesma palavra para mundo em 

“E ele é a propiciação pelos nossos pecados e...de todo o kosmos (mundo)” 

é usada em I João 5:19 

“Sabemos que [nós] somos de Deus, e que todo o kosmos (mundo) está no maligno”.

Se fossemos seguir a interpretação de que a ira de Deus foi aplacada em relação ao kosmos, então teríamos que dizer que o kosmos está no maligno e ainda assim Deus não está irado com ele. O que é melhor é deixarmos a Escritura interpretar a Escritura (e não usar a Escritura para descartar a Escritura), ou seja, usar I João 5:19 (e as outras ocorrências de kosmos) para nos ajudar a entender I João 2:2. Note que naquele o “nós” e o “todo mundo” estão em oposição um com o outro. 

“[Nós] somos de Deus” versus “todo o kosmos (mundo) está no maligno”. 

Essa oposição é reforçada pelo uso de kosmos no restante de I João, conforme ensina Eric Svendsen:

“O "mundo", na visão de João, consiste daqueles que não ultrapassaram as filosofias anti-cristãs, tais como a cobiça, o materialismo, o orgulho e falsos ensinamentos religiosos (2:15-17; 5:4-5); daqueles que não compreendem e até mesmo odeiam os verdadeiros cristãos (3:1,13); daqueles que tem abraçado os falsos profetas (4:1,3),daqueles que são controlados pelo maligno (4:4; 5:19), e tem abraçado o espírito de erro (4:5-6). A comparação, portanto, é entre os crentes e o resto da humanidade incrédula”.


Um último problema para o argumento é que a palavra "propiciação" (hilasmos) não significa "aplacar a ira" pelo simples motivo dela ser um substantivo e não um verbo. Hilasmos como um substantivo se refere a sua função e não ao que tem realizado. Se estivesse em forma verbal indicaria o que foi realizado, a saber, reconciliação. Como um substantivo ele significa o meio pelo qual o pecado é expiado, o sacrifício expiatório.

Veja, é diferente dizer "eu conduzi eles" e "eu sou o condutor deles". Se nós dissermos que “Eduardo é o “condutor” (motorista) para o presidente da empresa, não só para o presidente, mas para todos os trabalhadores da empresa” isso não quer dizer ou implica que João tem realmente conduzido a todos. Se Eduardo é um condutor, essa é a sua função. Isso não quer dizer necessariamente que ele conduziu. Seria a mesma coisa se disséssemos: "João tem uma faca, não só para mim, mas para todos os seus companheiros." Isso significa que João realmente esfaqueou alguém? Claro que não.



Um outro exemplo: “João é o professor na vila”. Isso significa que ele deu aula para todos na vila? Talvez João não tenha realmente ensinado ninguém na vila. A função e o ofício de João é esse e se alguém quiser que seus filhos obtenham algum ensinamento, eles vão até João. Mas seria errado depois converter o substantivo em verbo, dizendo: João ensinou a vila. Você não pode inferir isso, pois talvez João tenha acabado de se formar na faculdade e tenha chegado ontem na vila. Talvez a aldeia odeie João e se recuse a enviar seus filhos para a escola. Talvez João seja protestante e a aldeia católica, e ele tenha sido forçado para a vila pelo governo.

Apenas para reforçar, Santo Agostinho faz uso do mesmo raciocínio comentando sobre outro texto
:
"Assim como, ao nos referir a um único professor de letras da cidade, corretamente dizemos: ELE ENSINA A TODOS A LITERATURA, não porque todos recebem dele o ensinamento, mas porque toda pessoa que nesta cidade aprender literatura, certamente só poderá aprender com ele.  Da mesma forma, nós dizemos com exatidão que "Deus ensina todos a vir a Cristo", não porque todos venham, mas porque ninguém vem de outro modo." [1]


Embora esses exemplos já sejam suficientes para demonstrar a diferença de sentido de uma palavra quando usada como um substantivo e quando usada como um verbo, acrescento dois casos semelhantes no Novo Testamento:

“...Deus...é o Salvador (soter) de todos os homens, principalmente dos fiéis” I Timóteo 4:10.

“E vimos, e testificamos que o Pai enviou seu Filho [para ser ] o Salvador do mundo (kosmos)”. I João 4:14



Alguns autores buscando evitar um sentido nesses versículos que apóie o universalismo (a crença de que todos serão salvos no final) interpretam “soter” e “kosmos” respectivamente como “benfeitor” e “eleitos”; Como não temos a intenção de abordar a discussão existente sobre isso nessa postagem, nos limitaremos a apontar que interpretar “soter” como “benfeitor” contraria todo o uso do termo no Novo Testamento e que a interpretação de “kosmos” como “eleitos” já foi descartada mais acima e, se o leitor julgar necessário, pode ver um estudo mais detalhado sobre isso elaborado por Neil Chambers aqui

Além de tal interpretação ser equivocada, ela também é desnecessária, pois o mesmo raciocínio utilizado para os exemplos anteriores pode ser usado aqui. Dizer que Deus é o “Salvador de todos os homens” ou “do mundo” significa que Ele salvou todos os homens? É claro que não. Isso significa que a função e o ofício de Cristo é esse e se alguém tiver de ser salvo, será por meio Dele. Não há outro meio de salvação. 

Voltando ao sentido de I João 2:2, o que o texto diz é que Cristo é o meio pelo qual nossos pecados são propiciados, não somente nossos pecados, mas os pecados de todo o mundo. Isso é tudo o que o texto diz. Com as Escrituras devemos ser claros e cuidadosos para limitar nossas conclusões para o que a linguagem e a sintaxe bíblica realmente implicam. Querer que ele diga mais que isso é reescrever as Escrituras.

Notas:

[1]http://cristaodebereia.blogspot.com.br/2013/11/mil-anos-antes-de-calvino-deus-elege.html

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