segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dominic Bnonn Tennant: Um Simples Argumento Contra o Propósito Salvifico Universal de Deus

Em uma correspondência recente, eu apresentei um breve argumento contra a concepção católica romana dos propósitos de Deus, e em favor de uma concepção calvinista supralapsariana. Como eu creio que esse é um bom e eficaz argumento contra outras posições além da católica romana, vou desenvolvê-la a seguir. É um argumento da realização do propósito divino, e é baseado em Isaías 46:9-11.


Eu vou primeiro (I) fazer uma muito breve exegese dessa passagem, (II) comentar sobre a distinção que deve ser traçada entre desejo e propósito, e em seguida, (III) estabelecer alguns fundamentos para o meu argumento ao destacar a tradição teológica que ele rejeita, antes de ( IV) apresentar o argumento em si.

I. Uma Breve Exegese de Isaías 46:9-11

“Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim;que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé, farei todo o meu propósito;que chamo a ave de rapina desde o Oriente e de uma terra longínqua, o homem do meu conselho. Eu o disse, eu também o cumprirei; tomei este propósito, também o executarei.”

Esta passagem estabelece dois fatos essenciais: (i) que Deus, desde o início, declara o fim, e (ii) que essa declaração é baseada no que Ele se propôs a fazer acontecer. A última é a palavra-chave, tendo em vista que sobre ela eu desenvolverei o argumento. Nesta passagem, ela é usado tanto como um substantivo (versículo 10) quanto como um verbo (versículo 11). Como substantivo, "propósito" é principalmente (a) colocar algo como um objeto ou fim a ser alcançado, isto é, uma pretenção e (b) uma resolução ou determinação. Secundariamente, é um assunto sob discussão, ou uma ação em curso de execução.1 Como um verbo, é propor como um objetivo para si mesmo.2 No hebraico, o substantivo é chephets, e refere-se ao prazer, deleite ou desejo. 3 O verbo é yatsar, o que significa, literalmente, moldar em uma forma, especialmente como um oleiro; 4 portanto, no contexto, determinar, formar ou conceber antecipadamente.5

Essencialmente, então, o que essa passagem está afirmando é que tudo o que Deus pretende trazer, Ele vai fazer com que aconteça. Quando, desde o início, Ele declara o fim, não é apenas uma declaração baseada em um conhecimento passivo ou externo ou do que acontecerá, mas sim baseado em um conhecimento ativo ou interno do que Ele irá fazer. Colocando em familiares termos teológicos, essa passagem estabelece que a onisciência de Deus está indissociavelmente relacionada com a sua onipotência: Ele sabe tudo o que ocorrerá na história, porque Ele sabe tudo o que fará com que ocorra na história.


II. Distinguindo entre Propósito e Desejo

Tendo estabelecido e comentado sobre a execução inevitável dos propósitos de Deus, é necessário estabelecer uma distinção entre estes e Seus desejos. Isso não irá dizer que nada que Deus propõe Ele também não deseja. Ele não propor e então fazer acontecer coisas que Ele não desejou propor e fazer acontecer – isso faria Dele um esquizofrênico. Então somente o que Deus deseja Ele propõe. Mas note que se nessa frase nós tivessemos dito “aquilo que Deus deseja Ele propõe” nós sutilmente implícitariamos que tudo o que Ele deseja Ele propõe. Isso não procede! Certamente, algumas das coisas que Ele deseja Ele propõe, mas o fato de desejar algo não, em si e de si mesmo, indicam necessariamente que Ele propôs isso.

Na verdade, o contrário pode ser igualmente verdadeiro. Deus pode desejar grandemente algo e, assim propor isso; e pelo próprio ato de trazer sobre seu propósito Ele pode estabelecer as condições sobre as quais tem um contrário, embora menor, desejo. Por exemplo, ele pode propor redimir a humanidade através do sacrifício de seu filho e, na consecução deste propósito, Ele pode estabelecer um número de condições que, em virtude de Seu caráter moral, Ele tem um desejo simples contra. Ele deseja ver seu Filho viver, não morrer. Que pai não desejaria? - E se um pai humano, quanto mais um divino? Ele deseja ver as pessoas fazerem bem a seu filho e não que o matem. Que bom pai humano não desejaria assim? Se um bom humano desejaria assim, quanto mais um bom Deus? No entanto, esses desejos são contingentes à cada próprio propósito que eles se opõem. Assim, eles são simples desejos morais ou atitudes que não aumentam o nível de seus propósitos ou resoluções. E, porque eles não são propósitos ou resoluções não há nenhuma auto-contradição nas ações de Deus. O fato Dele ser capaz de entreter desejos opostos, mas hierárquicos só demonstra que Ele é capaz das mesmas atitudes complexas que nós somos. Isto torna-se importante ao analisarmos a conclusão do meu argumento.

III. Um Esquema Básico da Doutrina em Oposição

O argumento que eu estou fazendo é contra as tradições teológicas que afirmam o propósito salvífico universal de Deus. Esta é uma crença cristã comum que pode ser resumido como se segue:

1. Deus colocou em Sua mente, como um objeto ou fim a ser alcançado, a salvação de todas as pessoas sem exceção;
2. Ele tem agido na história para atingir este fim através da obra de Jesus Cristo;
3. E Ele é impedido de alcançar isso apenas pelo livre arbítrio daquelas pessoas que optam por rejeitar suas propostas de salvação.

É provavelmente honesto dizer que, em várias iterações, isso representa uma posição "mainstream" (corrente principal) cristã. Eu mesmo vi isso ser apresentado como o próprio evangelho. É baseada na intuição moral de que seria condenável para Deus eleger apenas algumas pessoas para a salvação, enquanto não faz nenhuma provisão para a salvação de ninguém mais. De acordo com esta intuição, a benevolência infinita de Deus deve ser refletida em sua resolução genuína de que todos os homens sejam salvos, que por sua vez, deve trabalhar em m sua tentativa genuína de alcançar este objetivo na expiação de Jesus Cristo. Em suas variantes mais extremas, esta intuição leva naturalmente ao universalismo: a crença de que todas as pessoas, sem exceção, serão finalmente salvas. Em suas iterações mais conservadoras, a resolução de Deus para salvar todas as pessoas é mantida em tensão com o livre arbitrio libertariano dessas pessoas, pelo qual elas são capazes de escolher rejeitar a salvação oferecida.

Isso não contradiz prima facie a onipotência de Deus, porque, embora a onipotência não implique limitações externas ao poder de Deus, as limitações internas são não só possíveis mas também necessárias. Por exemplo, Deus não pode mentir, não pode fazer o que é logicamente impossível, e - de acordo com as tradições teológicas em questão - não pode ignorar o livre arbitrio libertariano daqueles que Ele escolheu salvar. Muitas razões são dadas para isso; genericamente, elas tendem a se reduzir a crença de que Deus estaria de alguma forma agindo contra Seu caráter se não nos permitisse fazer nossa livre escolha (mesmo quando essas são contra Seu próprio interesse). Isso geralmente é apoiado por, pelo menos, o argumento de que Deus estaria agindo contra o seu caráter se Ele fosse coagir as pessoas a amá-lo, porque o amor que não é dado livremente não é genuíno. Dessa forma, a única limitação sobre a capacidade de Deus de salvar as pessoas é aquela que Ele impõe a Si mesmo por mérito de seu próprio caráter em relação à liberdade libertariana.

Embora muito possa ser dito contra isso, eu estou supondo por causa do argumento que ele é pelo menos prima facie razoável. Tendo, então, colocado esse fundamento e concedido esse ponto, eu posso trazer Isaías 46:9-11 para suportar a demonstração muito simples de que uma contradição real, de fato, existe.

IV. O Argumento da Realização do Propósito Divino

A maior parte desse argumento é comprimida em três das seis premissas. A primeiro e a segunda são acrescentados a fim de garantir a clareza no que diz respeito as específicas hipóteses teológicas que estão sendo feitas. Assim, a premissa (1) serve para qualquer tipo de posição cristã no argumento e a premissa (2) funciona como um abrange-tudo tanto das tradicionais quanto das heréticas formulações da onisciência de Deus

1.Deus propôs salvar as pessoas.
2.Se Deus propôs salvar as pessoas, então Ele sabe quais pessoas Ele propôs salvar.
3.Tudo que Deus propõe Ele realiza.
4.Portanto, cada pessoa que Deus propôs salvar Ele salvará.
5.Nem todas as pessoas, sem exceção, são salvas.
6.Portanto, Deus não propôs salvar cada pessoa sem exceção.

A conclusão decorre necessariamente, de modo que para negá-la é preciso negar, pelo menos, uma das premissas. Permitam-me comentar brevemente, então, cada premissa por sua vez.

1. Deus Propôs Salvar Pessoas

Eu começo com essa premissa muito genérica por causa da precisão e potência. É uma premissa que não pode ser negada por qualquer cristão, uma vez que o ponto do Evangelho é que Deus quer e pretende salvar pelo menos algumas pessoas. Eu não disse exatamente quais as pessoas, e assim a premissa é incontroversa. Assim, é um bom lugar para começar, pois mostra que o argumento in toto se aplica a qualquer um que se chame de cristão.

2.Se Deus propôs salvar as pessoas, então Ele sabe quais pessoas Ele propôs salvar

Novamente, esta é uma premissa incontroversa, uma vez que mesmo aquelas pessoas que negam a vontade presciente perfeita e definitiva de Deus afirmam que Ele não é tão senil que não têm noção alguma de quem Ele pretende salvar. Especificamente, uma vez que o argumento é feito contra aqueles cristãos que acreditam que Deus propôs salvar a todos - isto é, o conjunto de todas as pessoas - a questão se Ele sabe exatamente todas as pessoas abrangidas no âmbito deste conjunto é discutível. Portanto, a premissa é igualmente obrigatória para um arminiano como a um teísta aberto, uma vez que ambos precisam concordar com isso na visão da onisciência de Deus, mesmo que tenham visões diferentes sobre que tipo de conhecimento a onisciência implica.

3.Tudo que Deus propõe Ele realiza.

À luz da exegese de Isaías 46:9-11 acima, esta também deve ser uma afirmação incontestável. Uma vez que o próprio Deus afirma: "Eu realizarei todo o meu propósito; [...] tomei este propósito, também o executarei." (v 10,11), negar essa premissa é efetivamente negar a inerrância da Escritura. A não ser que um argumento exegético convincente possa ser feito dessa passagem afirmando o oposto lógico do que ela está dizendo (ou seja, que Deus não realizará tudo que Ele propôs), a única forma de negar a premissa é cair no liberalismo. Assim, meu argumento não se estende tão longe como para refutar os liberais – sua baixa visão da palavra de Deus deve ser refutada em seus próprios fundamentos.

4. Portanto, cada pessoa que Deus propôs salvar Ele salvará.

Esta premissa decorre necessariamente de (2) e (3). Se Deus propôs salvar as pessoas, quer especificamente quer genericamente como um grupo inteiro, e se Seus propósitos são sempre realizados, então a salvação dessas pessoas é inevitável.

5. Nem todas as pessoas, sem exceção, são salvas.

Esta é a premissa que pode ser negada por alguns que se dizem cristãos. Universalismo está cada vez mais na moda até mesmo entre os cristãos "evangélicos", por causa dessas mesmas intuições morais que levam as pessoas a supor que os propósitos de Deus em salvar a todos, em primeiro lugar. Assim, meu argumento não se estende para refutar qualquer universalismo mais do que o liberalismo, mas, ao contrário, universalismo como liberalismo é uma das suas conclusões lógicas se (6) é rejeitado sobre o fundamento de ser moralmente intragável. Este tipo de rejeição requer uma diferente abordagem argumentativa.

6. Portanto, Deus não propôs salvar cada pessoa sem exceção.

Esta é a conclusão logicamente necessária das premissas anteriores, presumindo que não se abandonou a Escritura para o liberalismo ou universalismo (ou ambos). Lembre-se que, conforme a discussão na posição (II) acima, isto não implica a conclusão de que Deus não deseja salvar todas as pessoas sem exceção. Tudo o que se provou é que não é seu propósito. Assim, em qualquer posição remotamente ortodoxa de Deus, o argumento consegue afirmar de forma irrefutável a visão calvinista da eleição enquanto, simultaneamente, refuta as opostas.

Notas:


1. Merriam-Webster Online, “purpose” (retrieved August 2008).
2. Ibid.
3. Brown, Driver, Briggs, Gesenius, “chephets” (retrieved August 2008).
4. Strong, “yatsar” (retrieved August 2008).
5. Brown, Driver, Briggs, Genesius, “yatsar” (retrieved August 2008).

Fonte: http://bnonn.thinkingmatters.org.nz/a-simple-argument-against-gods-universal-salvific-intent/
Tradutor:  Emerson Campos Pinheiro.