sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Zacarias Ursino (1534-1583): Comentário sobre a Questão 37 do Catecismo de Heidelberg

Questão 37: O que você compreende pela palavra “sofreu”?

Resposta: Que todo o tempo em que Ele viveu na terra, mas especialmente no final da sua vida, Ele suportou, em corpo e alma, a ira de Deus contra os pecados de toda a raça humana; a fim de que pelo seu sofrimento, como o único sacrifício expiatório, Ele pudesse redimir nosso corpo e alma da danação eterna, e obter para nós a graça de Deus, a justiça e a vida eterna. [Lord’s Day 15, Q 37.]


I. O que devemos entender pela Paixão de Cristo, ou que Cristo sofreu?

Pelo termo paixão devemos entender toda a humilhação de Cristo, ou a obediência de toda sua humilhação, todas as misérias, enfermidades, tristezas, tormentos e vergonhas a que foi sujeito, por nossa causa, desde o momento de seu nascimento até a hora da Sua morte, tanto no corpo quanto na alma. A principal parte de Seu sofrimento e angústia foram os tormentos da alma, nos quais Ele sentiu e suportou a ira de Deus contra os pecados de toda a humanidade


Pela termo paixão, porém, devemos entender, principalmente, a cena final, ou o último ato de sua vida, no qual Ele sofreu extremos tormentos, tanto no corpo quanto na alma, por conta de nossos pecados. " A minha alma está cheia de tristeza até a morte." "Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste." “Verdadeiramente ele tomou nossas dores. Ele foi ferido pelas nossas transgressões. " " Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo." (Mateus 26: 38, 27: 46. É. 53: 4, 5, 10).

Portanto, o que Cristo sofreu? 

1. A privação ou destituição da maior felicidade e alegria, junto com todas aquelas coisas boas que ele poderia ter desfrutado. 

2. Todas as enfermidades da nossa natureza, excetuando-se o pecado: Ele teve fome, teve sede, esteve cansado, foi afligido com tristeza e pesar, etc. 

3. Extrema necessidade e pobreza: "O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça." (Mt 8: 20.) 

4. Infinitas injúrias, acusações, calúnias, traições, invejas, difamações, blasfêmias, rejeições e desprezo: " Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado de muitos” ." "Ele não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos "(Salmo 22: 6. Is 53, 2).

5. As tentações do diabo; "Ele foi tentado em todas as coisas como nós, mas sem pecado." (Hebreus 4: 15.) 

6. A morte mais reprovável e vergonhosa, precisamente a da cruz. 

7. A angústia mais aguda e mais amarga da alma, que é sem dúvida o sentir a ira de Deus contra os pecados de toda a raça humana. Foi isto que o levou a exclamar, sobre a cruz, com uma voz forte: "Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?" Como se quissesse dizer “Por que tu não afastas de mim tais serveros tormentos e angústias?” Assim, vemos o que e quão grande é o que Cristo sofreu em nosso nome.

Mas, uma vez que a natureza divina estava unida a humana, como é possível que Ele fosse tão oprimido e enfraquecido ao ponto de irromper em tais exclamações de angústia e, especialmente quando houve mártires que foram muito mais ousados e corajosos? 

A razão disso resulta da diferença que houve na punição que Cristo sofreu e a dos mártires. São Lourenço, morrendo na grelha não experimentou a terrível ira de Deus, seja contra si mesmo ou contra os pecados de toda raça humana, toda a pena que foi imposta sobre o Filho de Deus, que como diz Isaías, foi moído e ferido de Deus por nossos pecados.  Dizemos, então, que São Lourenço não sentiu a ira de um Deus ofendido o perfurando e ferindo; mas sentiu que Deus estava reconciliado e em paz com ele; nem ele experimentou os horrores da morte e do inferno, como fez Cristo, mas teve grande consolação, porque  sofreu por conta de confessar o evangelho, e foi assegurado que seus pecados foram perdoados através e por causa do Filho de Deus, sobre quem eles foram lançados, de acordo com o que é dito: "Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo".. (João 1: 29).

Por isso, é fácil de ser explicado porque São Lourenço parecia ter mais coragem e presença de espírito em seu martírio do que Cristo em sua paixão; e daí também porque a natureza humana de Cristo, embora unida à divindade, chegou a suar gotas de sangue no jardim, e à vazão dada no pranto triste: "Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?" Não que houvesse qualquer separação entre as naturezas em Cristo, mas como a humanidade foi por um tempo abandonada pela Divindade, a Palavra estando em repouso, ou quieta (como diz Irineu) e não trazendo ajuda e libertação para a humanidade aflita até que uma paixão totalmente suficiente pudesse ser suportada e concluída. [P., 212-213.]

7)Objeção. 4. Se Cristo fez satisfação por todos, então todos deveriam ser salvos. Mas nem todos são salvos. Portanto, Ele não fez uma perfeita satisfação.

RespostaCristo satisfez por todos, com respeito a suficiência da satisfação que Ele fez, mas não com respeito a sua aplicação; pois Ele cumpriu a lei em um duplo sentido. Em primeiro lugar, pela sua própria justiça. Em segundo lugar, fazendo satisfação por nossos pecados. Sendo cada um mais perfeito. Mas a satisfação é feita nossa por uma aplicação, a qual é também dupla; a primeira das quais é feita por Deus, quando Ele nos justifica em razão do mérito de seu Filho, e leva-nos a deixar o pecado; a última é realizada por nós através da fé. Porque nós aplicamos a nós mesmos, o mérito de Cristo, quando por uma verdadeira fé, somos plenamente convencidos de que Deus, por causa da satisfação de seu Filho, perdoa-nos os nossos pecados. Sem esta aplicação, a satisfação de Cristo é de nenhum benefício para nós. [P., 215.]

Para isso nós respondermos que não meramente inclui uma fé histórica, mas que envolve essa crença em Cristo que nos leva a confiar em sua paixão. É, portanto, crer, em primeiro lugar, que Cristo, desde o momento do seu nascimento, sofreu, suportou as áridas misérias de todo tipo; e que Ele, especialmente no período final de sua vida, padeceu sob Pilatos os mais graves tormentos tanto no corpo quanto na alma, e que sentiu a terrível ira de Deus, fazendo satisfação pelos pecados do mundo inteiro, e apaziguando a ira divina, que foi excitada pelo pecado. É também crer, em segundo lugar, que ele suportou tudo isso em meu nome e, assim, satisfez também por meus pecados por meio de sua paixão e conquistou pelo seu mérito, para mim, a remissão dos pecados, o Espírito Santo, e a vida eterna. [p. 217-218].

9) 3. Em virtude das promessas feitas aos pais, pelos profetas, como a que está contida em Isaias 53, 7: "Ele como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele não abriu a sua boca", e também por causa dos tipos e sacrifícios, pelos quais Deus significava que Cristo deveria morrer uma morte que fosse um resgate suficiente pelos pecados do mundo. Essa, agora, não foi a obra de nenhuma criatura, mas do Filho de Deus. Por isso, Ele veio a sofrer uma dolorosa morte em nosso nome. [p. 221.]


10) Objeção 3: É próprio e justo que aquele que recebeu um resgate suficiente pelos pecados de todos, deve admitir todos em seu favor. Deus recebeu em seu Filho um resgate suficiente pelos pecados de todo o mundo. Portanto, Ele é obrigado a receber todos em seu favor. 

Resposta: É justo que aquele, que recebeu um resgate suficiente por todos e o qual seja aplicado a todos, deva admitir todos em seu favor. Mas não há aplicação disso para todos, porque é dito, "Eu não rogo pelo mundo, mas para aqueles que tu me deste" Mas um resgate, dizem nossos adversários, que é suficiente para todos, deve ser aplicado a todos, porque a Ele pertence a misericórdia infinita de fazer o bem a todos. Entretanto nós negamos que a infinita misericórdia consista no número dos que são salvos. Pelo contrário, consiste na maneira pela qual são salvos. Deus, aliás, não concederá essa benção a todos, porque Ele é mais sábio e justo.

Ele pode e quer exercer a sua misericórdia e a sua justiça ao mesmo tempo. "Porque Deus amou o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." Aquele que não crê já está condenado ",etc (João 3: 1 (5, 18.)  

Além disso é objetado: Aquele que recebe um resgate que é suficiente por todos, e ainda assim não salva a todos, é injusto, porque Ele recebe mais do que Ele dá. Mas Deus não é injusto. Portanto, Ele recebe todos em seu favor. 

Resposta: Ele, que assim age, é injusto, a menos que Ele próprio tenha dado o resgate. Mas Deus deu o resgate. Portanto, Ele recebe de si mesmo, e não daquilo que nos pertence. Novamente: não é a suficiência, mas a aplicação deste resgate, que compele a Deus a receber todos em seu favor. Mas Ele não tem obrigação, em si mesmo, de aplicar esse resgate para todos. [p., 295.]

Source: Zacharias Ursinus, The Commentary of Dr. Zacharias Ursinus on the Heidelberg Catechism, trans., by G.W.Willard, (Phillipsburg: P&R, 1994).

Fonte: http://calvinandcalvinism.com/archives/19