Essa objeção é, conforme eu vejo, a menos competente daquelas que eu estou indo considerar. Falando de uma maneira geral, ela se foca na sincera oferta do evangelho – que é tipicamente defendida pelos que tomam a expiação como universal – e tenta demonstrar que ela acarreta obrigatoriamente inconsistência ou irracionalidade em Deus. Isto é, se a salvação é sinceramente oferecida para todos, então segue-se que Deus deve de fato desejar a salvação de todos. Se Ele não desejar, então não seria sincero em oferecê-la.¹ Portanto, é dito que a expiação universal faz com que Deus seja conflitante e irracional – uma vez que , como John Owen coloca:
“Eles afirmam que Deus é dito propriamente esperar e desejar diversas coisas as quais nunca virão a acontecer. 'Nós concedemos' diz Corvinus, 'que existem desejos em Deus que nunca serão realizados'. Agora, certamente, desejar aquilo que é certo que nunca virá a acontecer não é um ato regulado pela sabedoria ou pelo conselho; e portanto, eles devem conceder que, antes, Ele não sabia mas talvez isso pudesse ser. “Deus anseia e deseja algumas coisas boas, as quais não virão a acontecer”, eles dizem, em sua Confissão, de onde uma daquelas duas coisas deve se seguir necessariamente – ou, primeiro, que há uma grande quantidade de imperfeição em sua natureza, desejar e esperar o que sabe que nunca virá a acontecer, ou, então, Ele não sabia, mas isso poderia, o que derruba sua presciência."²
Conseqüentemente, particularistas consistentes negam que Deus pode oferecer aos réprobos a salvação de forma sincera, uma vez que a oferta de algo de forma sincera significa que você quer que a pessoa a aceite. Uma vez que Deus sabe que os réprobos não aceitarão, Ele seria irracional se oferecesse a eles. De fato, uma vez que Ele tem decretado que eles não a aceitarão, parece claro que Ele deseja o oposto. Vincent Cheung declara a matéria com sua força costumeira:
“A doutrina em questão tem sido chamada “a livre oferta”, “a bem intencionada oferta”, e “a sincera oferta” do evangelho[...]Minha posição é que isso faz de Deus um esquizofrênico tolo. Isso é não-bíblico e irracional, e assim deve ser rejeitada e combatida [...]nós não devemos apresentar o evangelho como uma sincera oferta para todos, como se o “desejo” de Deus pudesse diferir de seu Decreto, como se Deus pudesse ou decretasse contra seu “desejo” (quando a Escritura ensina que Ele decreta o que Ele deseja – isto é, seu “bom agrado” - e o que Ele deseja, Ele decreta e faz certo), e como se fosse possível até para os não-eleitos serem salvos [...]³
I. A expiação universal não necessita da sincera oferta do evangelho
Deve ser notado que os argumentos que eu tenho dado para um escopo universal para a expiação não necessitam, em e de si mesmos, da visão de que Deus oferece o evangelho aos réprobos Até onde eu posso ver, a sincera oferta do evangelho é realmente uma questão separada do escopo da expiação. Meu argumento de que o chamado universal do evangelho é debilitado se a expiação não for universal não requer que o chamado seja concebido como um oferta. Isso é porque eu uso o termo “chamado” - porque não favorece outra visão. O evangelho é certamente um chamado, independentemente se é somente uma ordem, ou também uma oferta.
Apesar do que foi dito acima eu sei que muitos proponentes da expiação universal crêem que o evangelho é mais do que apenas uma ordem: eles acreditam que Deus oferece sinceramente a salvação aos réprobos Certamente eu também. Portanto, compete a mim desarmar a objeção particularista de outras maneiras.
II. Se esse argumento tiver sucesso, ele também refuta o particularismo
É óbvio que os particularistas estão ou severamente míopes em fazer essa objeção, ou estão engajados em alguma monumental defesa especial. Para demonstrar o que eu quero dizer, deixe-me levá-lo ao argumento de Owen que “desejar aquilo que é certo que nunca virá a acontecer não é um ato regulamentado pela Sabedoria ou Conselho”.
2.Se Deus age, então Ele age de uma maneira regulada pela sabedoria
3. Portanto, se Deus age desejando uma coisa, então Ele não age desejando uma coisa que Ele sabe que não virá a acontecer [por modus tollens]
4. Se o evangelho é oferecido sinceramente a todos (S) isso implica que Deus deseja a salvação de todos (E)
5. Mas a salvação de todos não vem a acontecer.
6. Portanto, se o evangelho é oferecido sinceramente a todos, Deus deseja uma coisa que sabe que não virá a acontecer [por hypothetical syllogism]
7.Mas nós sabemos que Deus não deseja algo que não virá a acontecer [de 3]
8. Portanto, o evangelho não é oferecido sinceramente a todos [por modus tollens]4
Mas tomando o chamado do evangelho sobre os próprios termos dos particularistas, nos quais ele é somente um mandamento, o mesmo argumento parece levar a resultados absurdos. Deus não deseja ou espera que sua ordem seja obedecida? Certamente que não está mesmo em questão que em algum sentido Ele deseja o que Ele ordena, mesmo se somente no sentido de que seus mandamentos são “santos, justos e bons” (Romanos 7:12), uma vez que eles são reflexos de seu próprio caráter. E porque eles são reflexos de seu próprio caráter, porque “justo e reto Ele é”, Ele tem “prazer em retidão” (1 Cronicas 29:17) e certamente “ama a justiça” (Salmo 11:7). E eu preciso mencionar que amar algo é, por definição, desejar em algum sentido?
Dado isso, no argumento acima, se nós recolocarmos “oferecida” por “ordenada” em relação ao evangelho, nós somos levados ao mesmo resultado. Se Deus realmente deseja que seus mandamentos sejam obedecidos (em algum sentido) quando Ele sabe que eles não serão obedecidos, então Ele não deve estar agindo de uma maneira “regulada pela sabedoria”. O particularista, portanto, é deixado defendendo a absurda noção de que Deus em nenhum sentido deseja o que Ele, não obstante, ordena, a fim de que Ele não seja, de alguma maneira, irracional.
Similarmente e reciprocamente, é também claro que se você odeia algo, então em algum sentido você não o deseja. Mas, Deus é “não um Deus que se deleita com a impiedade”, mas que “odeia todos que praticam a iniqüidade” (Salmos 5:4-5). Dado o argumento acima, certamente é igualmente verdade que não desejar o que é certo que virá a acontecer demonstra igualmente uma tão grande falha da sabedoria e do conselho de Deus? Sobre qualquer visão calvinista, Deus decreta tudo que virá a acontecer. Assim, ao criar esse argumento, o particularista é apanhado sobre os chifres de um dilema.
Dado o argumento dos particularistas, ou Deus não pode desejar o que decreta, ou Ele não pode desejar o que ordena. De fato, Vincent Cheung parece claramente afirmar isso, dizendo que nós não devemos pretender “como se o desejo de Deus pudesse diferir de seu decreto, como se Deus pudesse ou decretasse contra seu 'desejo', porque a Escritura ensina que o que Ele decreta Ele deseja” e “e o que Ele deseja, Ele decreta”. Vincent parece estar descrevendo uma relacionamento exclusivo entre os decretos de Deus e Seus desejos, de forma que se – e somente se – Deus tiver decretado algo, então Ele deseja isso.
Isso necessariamente significa, como eu estou certo que alguém com uma mente afiada como Vincent terá que reconhecer, que se Deus não decretar algo, Ele não deseja isso. Como eu argumentei com Ron Di Giacomo, que toma uma visão muito similar 5, enquanto é certamente verdade que Deus decreta algo se, e somente se, Ele desejar isso, não pode ser comensuravelmente verdade que Ele deseja algo se, e somente se, Ele decretar. De fato, é essa visão que faz Deus insano, uma vez que nela, Ele, em nenhum sentido, deseja que seu comando seja seguido – nesse caso eles o tornam ininteligível como imperativo moral.
Por exemplo, se não há nenhum sentido no qual Deus deseja que todas as pessoas se arrependam, então porque Ele ordena isso? Desnecessário é dizer que uma vez que Ele ordenou isso, todas as pessoas devem fazê-lo. Mas o que significa para Deus absolutamente não desejar o que deve vir a acontecer; e ao invés absolutamente desejar o que não deve vir a acontecer? Certamente essa é uma genuína auto-contradição, como oposta a meramente superficial aparência de contradição vinculada pela expiação universal, onde Deus tem múltiplos desejos em relação a mesma situação. Finalmente, se a objeção do particularista tivesse sucesso aqui, ele se compromete a crer que, em algumas situações, Deus deseja aquilo que é mau enquanto em nenhum sentido deseja o contrário.
Essa é uma absurda visão de Deus – onde Ele aparece de forma inequivoca desejando o que é completamente contrário ao seu caráter, enquanto não deseja em qualquer sentido a antitese, mesmo que esteja em conformidade com seu caráter. A única maneira de tal visão fazer sentido é afirmar que Deus não tem desejos, atitudes ou intenções por absolutamente nada, com exceção daqueles desejos, atitudes e intenções que Ele tem com respeito ao seu propósito último. Mas qual justificação pode haver para tal noção extrema? Eu não posso simplesmente negar isso como claramente absurdo dado todos as vezes em que Deus evidencia genuíno desejo em situações especificas?
Como eu escrevi recentemente sobre o lamento de Jesus em Mateus 23:37, “deve ser reconhecido e não minimizado, que Jesus está evidenciando um sincero e cordial lamento. Como Matthew Henry coloca 'a repetição é enfática, e evidencia abundância de comiseração.' Assim nós não podemos aceitar [....] que Jesus realmente não queria ajuntar Israel, a despeito de dizer que Ele queria. Isso seria uma clara falsidade, e Deus não pode mentir. Então deve ser o caso que nosso Senhor genuinamente queria o que Ele disse que buscava”6. Essa passagem sozinha refuta a visão particularista.
Com relação especificamente a expiação, eu argumento com Bruce Ware que
“A intenção de Deus na morte de Cristo é complexa e não simples, múltipla e não singular:
1) Cristo morreu com o propósito de garantir a salvação de seu povo, seus eleitos, como certa e segura.
2) Cristo morreu com o propósito de pagar a penalidade pelos pecados de todas as pessoas fazendo possível para todos que crerem serem salvos.
3) Cristo morreu com o propósito de garantir uma oferta de salvação bone fide¹ para todas as pessoas em toda parte.
4)Cristo morreu com o propósito de providenciar um base adicional para condenação daqueles que ouvem e rejeitam o evangelho que tem sido genuinamente oferecido por eles.
5)Cristo morreu com o propósito de reconciliar todas as coisas com o Pai".7
Colocando simplesmente, eu nego a premissa que é de alguma forma irracional para Deus desejar uma coisa que Ele sabe que não ocorrerá. De fato, parece ser inteiramente congruente que Ele possua uma genuína afeição pelos réprobos, a despeito de que essa vontade nunca verá frutos – e mais, parece ser logicamente necessário. Na criação, Ele trouxe as circunstâncias que Ele mais desejava – a saber um mundo de pecadores os quais não serão todos salvos, de forma que Ele pudesse ser mais glorificado – e ao fazer isso Ele necessariamente fundamentou circunstancias nas quais Ele contingencialmente deseja a salvação daqueles já escolhidos para serem perdidos.
Os meros fatos de (a) seu perfeito caráter moral e (b) a existência daqueles pecadores perdidos, não necessitam que Ele em algum sentido deseje a própria coisa que tem decretado da eternidade que não ocorreria? O desejo é dependente das circunstâncias que negam seu cumprimento (seu plano na criação, o propósito último de sua vontade) – mas ele ainda permanece real. Entretanto pelo mérito dos fatos de que esse desejo é inteiramente estabelecido sobre a base de sua grande intenção de glorificar Seu nome por meio da reprovação dos pecadores por quem Ele sente esse desejo, não é completo nem frustrado. Porque para ser frustrada, ele teria de estar em oposição ao seu grande desejo de glorificar seu nome – mas certamente consentiu possuir esse desejo menor, e não completá-lo, quando estabeleceu seu plano na criação desde a eternidade. Dado esse consentimento interno, eu não posso ver nenhuma maneira na qual Ele possa corretamente ser chamado de frustrado.
Os particularistas (se eles forem consistentes) acreditam que a natureza moral de Deus não implica qualquer atitude de benevolência para até mesmo o mais impio dos pecadores condenados. Mas isso não é como os calvinistas tem tradicionalmente entendido o caráter de Deus. Isso não descreve um Deus que é amor (I João 4:8), mas meramente um Deus que tem amor. Isso não descreve um Deus que é tão perfeito que ama mesmo seus inimigos, mas um Deus que não ama mais do que os coletores de impostos amam seus amigos (Mateus 5:43ff). Assim me parece que os particularistas estão ajustando Deus como tendo de ser de uma certa maneira a fim de ser conformado com algum ideal platônico de sua própria fabricação, mas isso é um tipo de idolatria.
Notas:
1.↑ Repare que esse parece um sólido argumento que reflete o que os proponentes da expiação universal acreditam. Isso pode ser contrastado com um argumento que é algumas vezes seguido, mas que não é sólido, que se Cristo morreu por todos, então Deus deve desejar a salvação de todos. Dada minha discussão sobre representação federal e imputação forense na parte 1 dessa série, é desnecessário dizer que essa conclusão não se segue necessariamente (mesmo se isso for verdade por outras razões). Deus pode não ter qualquer desejo pela salvação dos réprobos, mas a natureza da representação federal ainda torna verdadeiro que Cristo morreu por todos.
2.↑ The Works of John Owen, volume 10 (The Banner of Truth Trust, 1967); p 25. 3.↑ Vincent Cheung, ‘The “Sincere Offer” of the Gospel, Part 1′ (http://www.vincentcheung.com/2005/04/05/the-sincere-offer-of-the-gospel-part-1/).
4.↑ De A:
1.¬P → ¬W
2.W
3.P [mt]
4.S → E
5.E → ¬P
6.S → ¬P [hs]
7.P [iii]
8.¬S [mt]
5.↑ Dominic Bnonn Tennant, ‘Does God desire the salvation of all?’ (http://bnonn.thinkingmatters.org.nz/2008/does-god-desire-the-salvation-of-all/).
6.↑ Dominic Bnonn Tennant, ‘Understanding God’s desires’ (http://bnonn.thinkingmatters.org.nz/2008/understanding-gods-desires/).
7.↑ Bruce A Ware, ‘Extent of the Atonement: Outline of The Issue, Positions, Key Texts, and Key Theological Arguments’ (http://www.powerofchange.org/blog/docs/ware_atonement.pdf [PDF; 25 kB]).
Fonte: http://bnonn.thinkingmatters.org.nz/on-the-atonement-part-4/
Tradutor: Emerson Campos Pinheiro. Ao utilizar esse texto devem ser citados a fonte e o tradutor.