sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Norman Douty: A Doutrina da Imputação

Imputar uma coisa a uma pessoa é, correta ou incorretamente, considerá-la ou contá-la como sua. Imputar pecado a um homem é colocar o pecado em sua conta, e imputar justiça a ele é colocar justiça em sua conta. O pecado imputado pode ser o pecado do próprio homem ou de outro, e a justiça imputada pode também ser a sua própria ou de outro.

Um caso de imputar a um homem seu próprio pecado, ou acusá-lo, é o de Simei. Ele tinha gravemente pecado contra Davi, no dia que o rei saiu de Jerusalém fugindo de Absalão, pois ele tinha lançado pedras contra ele, e o amaldiçoado. 


“E, amaldiçoando-o Simei, assim dizia: Sai, sai, homem sanguinário, homem de Belial! O Senhor te deu agora a paga de todo o sangue da casa de Saul, em cujo lugar tens reinado; já entregou o Senhor o reino na mão de Absalão, teu filho; e eis-te agora na desgraça, pois és um homem sanguinário” (2Sm 16.7-8). 

Mas quando Davi estava voltando, após a morte de Absalão, Simei correu até ele e disse: 

“Não me impute meu senhor à minha culpa, e não te lembres do que tão perversamente fez teu servo, no dia em que o rei meu senhor saiu de Jerusalém; não conserve o rei isso no coração. Porque eu, teu servo, deveras confesso que pequei” (2Sm 19.19-20). 

Aqui a imputação a que se refere é a de acusar um pecado pessoal de um homem contra ele.[1]

Um caso de imputar a um homem um pecado de outro, e culpá-lo por isto, é o de Acabe com Elias. O pecado do rei Acabe trouxe calamidade sobre o reino do norte de Israel, mas quando ele encontrou o profeta, ele o acusou de ser o perturbador da nação (1Re 18.17). Dessa forma ele imputou a Elias o mal cometido por ele mesmo e pela casa de seu pai (v. 18).[2]

Por outro lado, temos um exemplo de imputar a um homem seu próprio ato de justiça no caso de Finéias. Quando um israelita trouxe uma mulher midianita imoral ao acampamento, Finéias, um neto de Arão, o sumo sacerdote, tomou uma lança em sua mão, e foi atrás dos dois na tenda, onde ele os atravessou a ambos; ele assim fez cessar a praga que tinha sido violenta porque o povo tinha “se prostituído com as filhas de Moabe” (Nm 25.1-9). Deus tomou conhecimento deste ato corajoso, pois somos informados que “isto lhe foi imputado como justiça” (Sl 106.31).[3]

Um caso de imputar a um homem a bondade de outro, de forma que ele receba o que o outro merecia, é o de Davi e Mefibosete. O último foi o filho de Jônatas, a quem Davi usou de benevolência em consideração a seu amado amigo do passado (2Sm 9.1-13).[4]

Dessa forma, a imputação se relaciona tanto com o pecado quanto com a justiça. Às vezes a ação é causada pela própria pessoa, e então a lei é aplicada, que diz: “A justiça do justo ficará sobre ele, e a impiedade do ímpio cairá sobre ele” (Ez 18.20). Às vezes a ação é causada por uma outra pessoa, e é atribuída à pessoa que não a praticou.

Os três maiores exemplos de imputação na Escritura são: do pecado de Adão a nós, de nossos pecados ao Filho de Deus, e de Sua justiça a nós.

1. O pecado de Adão é imputado a todos os homens: “Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram” (Rm 5.12). Aqui o pecado imputado é nosso próprio pecado, pois pecamos quando Adão pecou. Seu pecado foi inclusivamente nosso, e é por essa razão justamente lançado contra nós, com o resultado que a sentença de morte imposta a ele é imposta a nós também.

2. A justiça de Cristo é imputada a todos os crentes. Isto é chamado “a justiça de Deus” em inúmeras passagens (Rm 1.17; 3.21-22; 2Co 5.21; Fp 3.9) – significando, não a justiça que Deus é, mas a que Ele dá. A retidão pessoal de Deus não é creditada a nós, mas a de Seu Filho encarnado é. Portanto, somos informados que “Cristo é o fim da lei para justificar a todo aquele que crê” (Rm 10.4), e que Deus fez Cristo ser nossa justiça (1Co 1.30). Cristo é “Senhor justiça nossa” (Jr 23.6), pois a bondade que Ele é e tem feito é imputada a nós.

É importante notar que a imputação a nós do pecado de Adão é simplesmente uma questão de justiça, visto que seu pecado foi nosso próprio assim como seu, mas que a imputação a nós da justiça de Cristo é puramente uma questão de graça, visto que a justiça imputada é exclusivamente de Cristo, não tendo nós nenhuma parcela de contribuição em sua produção.

Uma outra coisa importante a observar é que em ambos os casos a imputação resulta de uma união, embora a união não seja do mesmo tipo em ambos. Tome o primeiro caso. A imputação do pecado de Adão a nós flui do fato que nós participamos tanto de sua natureza humana como de sua depravação moral. Tivesse ele gerado filhos antes da queda, eles, tendo sua natureza apenas, e não também sua depravação, não teriam tido seu pecado contado como deles. O pecado dos anjos caídos não é contado como nosso, pois nem nossa natureza nem nossa depravação foi derivada deles. É porque estamos unidos a Adão (em sua vida natural e moral) que seu pecado é creditado a nós.

Em virtude de um diferente tipo de união, a justiça de Cristo é creditada a nós. Neste caso, a imputação resulta de uma união espiritual, que consiste na habitação comum do Espírito Santo nele, o Filho do Homem, e em nós. É por esta união do Espírito que somos ditos estar “em Cristo,” isto é, em união com Ele. Aqueles que estão fora de Cristo não têm Sua infinita retidão antes da lei divina creditada a eles. Somente aqueles que estão “nele” O possuem como sua justiça (1Co 1.30; Fp 3.10). Sua bondade de caráter e ação é creditada somente àqueles que estão unidos a Ele (pelo Espírito de Sua parte, e pela fé da nossa parte). Sendo membros de Cristo, Sua justiça pertence a eles no tribunal de Deus.

3. Quando chegamos a considerar a imputação do pecado humano ao Filho de Deus, o caso é ainda diferente. Ao passo que nos exemplos precedentes, a imputação resultou de uma união, nesta é somente associada com alguém.

Há somente duas uniões existentes entre o Filho e os homens. A primeira é uma união orgânica que ele tem com todos os homens em virtude de Sua encarnação, em que Ele se tornou homem de homem do mesmo modo que Ele tinha desde sempre sido Deus de Deus. Então há essa união espiritual que Ele tem com todos os crentes em virtude de sua incorporação, em que Ele se torna habitado pelo Espírito Santo que eternamente reside em Sua humanidade. Desta união que eu acabei de falar que resulta em nossa justificação.

Nenhuma destas uniões envolve a imputação do pecado humano ao Filho de Deus. O primeiro não, pois, embora o Filho assumiu a natureza humana sobre Si mesmo, Ele não a assumiu com a depravação humana. Então, Ele não poderia ser, por essa razão, mais creditável com nosso pecado do que os filhos de Adão, tivesse qualquer um nascido antes da queda, poderia teria sido creditável com o seu.

Há cinqüenta anos atrás ouvi A. H. Strong, o teólogo batista, dar uma palestra na qual ele defendia – como ele faz em sua Teologia Sistemática – que a encarnação do Filho com nossa natureza por si mesmo O envolveu em nossa culpa. Por muitos anos, eu pensava que ele estava correto, mas eu não penso mais assim. Na primavera de 1936, eu consultei Louis Berkhof, um professor no Calvin Seminary, Grand Rapids, sobre este ponto, e ele me escreveu o que eu estou certo que é a concepção correta. Ele disse: 

“Devemos distinguir entre a encarnação como tal e a apropriação de nossa culpa, mas ao mesmo tempo ter em mente que a distinção não é temporal mas lógica. O fato da encarnação como tal não necessariamente envolver a apropriação de nossa culpa, ainda que no plano de Deus isto foi destinado a ser acompanhado com ela. Visto que Cristo não foi uma Pessoa humana, mas divina, que assumiu a natureza humana, Ele não foi naturalmente, em virtude de Sua encarnação com nossa natureza humana.... envolvido em nossa culpa.... A culpa da humanidade veio sobre Ele, não como o resultado natural dele assumir nossa natureza, mas em virtude de uma imputação divina,” que ocorreu, ele afirma, quando o Filho de Deus, “voluntariamente Se colocou sob a lei.... tomando nosso lugar como o último Adão na Aliança das Obras.”

Nem a outra união (a união espiritual do Filho com os crentes) envolveu a imputação a Ele do pecado humano. Tivesse envolvido, então a expiação não poderia ser feita até que o último dos eleitos recebesse o Espírito Santo. Mas sabemos que ela é, agora, perto de 2000 anos, visto que a cruz foi levantada no Calvário, e outros ainda estão sendo incorporados em Cristo pela vinda do Espírito. Seus pecados foram imputados a Ele muito tempo antes deles serem unidos a Ele.

Não, a imputação do pecado humano ao Filho de Deus não resulta de Sua união natural com a raça ou de Sua união espiritual com os eleitos. Foi imputada a Ele somente porque Ele voluntariamente a assumiu quando Ele assumiu nossa natureza. Berkhof, na referida carta, diz, citando Gl 4.4: “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher (encarnação), nascido debaixo de lei (ao mesmo tempo assumindo nossa culpa).” O bispo Lancelot Andrewes (1555-1626), em seu famoso Sermons on the Nativity, diz a mesma coisa. No sermão IV lemos seus comentários sobre a passagem citada por Berkhof: “nascido de mulher, nascido debaixo de lei.” Ele diz:

“‘Nascido’ e duas vezes ‘nascido’.... ‘nascido de’ e ‘nascido debaixo de’.... Ele.... tomou para Si não apenas nossa natureza mas nossa dívida, nossa natureza e também nossa condição. Natureza como homens, condição como pecadores, expressada nas seguintes palavras, ‘os que estavam debaixo de lei;’ pois esta era nossa condição. De fato, não teria havido nenhuma capacidade dele agir assim, se o primeiro não tivesse acontecido antes.... se Ele não tivesse sido, como nós, ‘nascido de mulher.’ Mas o primeiro aconteceu por isto; ‘nascido de mulher’ Ele era, que Ele poderia ser ‘nascido debaixo da lei,’ que antes Ele não poderia, mas então passou a poder, e assim fez.”[5]

A dívida que Ele assumiu no início de Sua vida, Ele pagou no final dela.

Duas coisas são perfeitamente claras na Escritura: primeiro, que o Filho de Deus tinha que se tornar Homem antes de poder fazer expiação pelo pecado do homem. Ele tinha que sofrer na mesma natureza que tinha transgredido. Em Israel, era somente um parente próximo da família que poderia resgatar a herança de um homem. Então a consangüinidade tinha que preceder a redenção humana. Portanto, o Novo Testamento corretamente se harmoniza com a gloriosa verdade que Deus Filho se tornou homem ao assumir a substância da Virgem Maria numa união indissolúvel consigo mesmo.

A segunda coisa que é perfeitamente clara na Escritura é que o propósito da encarnação foi a expiação. O próprio Cristo disse; 

“O Filho do homem veio.... para dar a sua vida em resgate” (Mc 10.45). 

Paulo declara:

“Deus enviou seu Filho, nascido de mulher.... para resgatar” (Gl 4.4-5). 

O autor da epístola aos Hebreus nos conta que o Filho de Deus 

“foi feito um pouco menor que os anjos, por causa da paixão da morte” (Hb 2.9)


“Na consumação dos séculos, uma vez por todas se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hb 9.26). 

João acrescenta: 

“Ele se manifestou para tirar os pecados” (1Jo 3.5)


“Deus.... enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10).

Visto que a encarnação foi necessária para fazer o resgate, e visto que o propósito no primeiro foi o cumprimento do último, concluímos, à luz de Gl 4, que, embora a encarnação não envolva de si mesmo a imputação da encarnação humana de nossa natureza, todavia essa imputação acompanhou sua encarnação de nossa natureza. Apesar dele ter assumido a humanidade isto não O obrigou a fazer expiação, mas O capacitou a assim fazer. Ele se obrigou a assim fazer ao voluntariamente assumir nossas obrigações quando Ele assumiu nossa humanidade. E este é o consistente testemunho da Escritura: que o Filho agiu livremente na redenção. “Ele deu a Si mesmo” é a doutrina bíblica. Ele não foi obrigado a agir assim por causa de qualquer ligação antecedente com o homem, seja natural ou espiritual.

Os homens da Expiação Limitada geralmente sustentam, como nós, que, subseqüente à queda, os eleitos primeiros foram condenados em Adão, então condenados mas com a expiação provida, e finalmente (após arrependimento e fé) não mais condenados mas perdoados por causa da expiação aplicada. Eles também sustentam, como nós, que a primeira posição é devido à ligação orgânica dos homens com Adão através da geração, a segunda devido à obra expiatória do Filho de Deus, pela qual Ele qualificou a Si mesmo por sua ligação orgânica com eles através da encarnação, e a terceira devido à sua ligação espiritual com o Cristo glorificado através da incorporação.

Mas a ligação orgânica do Filho de Deus com os homens através da encarnação não foi somente com os eleitos; foi igualmente com os não-eleitos, pois ambas as classes têm a mesma humanidade. Ele assumiu a natureza de ambas. Por essa razão segue que se o fato dele assumir a natureza do homem fundamenta a imputação a Ele dos pecados dos eleitos, ela também fundamenta a imputação a ele dos pecados dos não-eleitos também. Pois observem: vimos que o pecado de Adão é imputado a todos os seus descendentes, e que a justiça de Cristo é imputada a todos os crentes. Em nenhum exemplo há uma única exceção: todos que são organicamente um com Adão estão envolvidos em seu pecado; e todos que são espiritualmente um com Cristo estão envolvidos em Sua justiça. Com que base, perguntamos, devemos acreditar que somente alguns daqueles com quem o Filho de Deus se identificou naturalmente, tiveram seus pecados assumidos por Ele, enquanto incontáveis milhões foram ignorados?

Vemos, então, que a teoria da Expiação Limitada está em desacordo com o princípio da universalidade encontrada nos outros dois maiores exemplos de imputação. Nos sentimos obrigados a manter que, como todos que são naturalmente um com Adão têm seus pecados imputados a eles, e como todos que são naturalmente um com Cristo têm Sua justiça imputada a eles, assim todos com quem o Filho de Deus se tornou naturalmente um tiveram seus pecados imputados a Ele.[6] Esta decução necessária é apoiada por vários textos. É “o pecado do mundo” pelo qual o Cordeiro de Deus sofreu (Jo 1.29). Ele é a propiciação “pelos pecados de todo o mundo” (1Jo 2.2). Como resultado, Ele é “o Salvador do mundo” (Jo 4.42; 1Jo 4.14).

Podemos agora resumir a doutrina bíblica da união orgânica e a imputação como segue: 

Primeiro, há a união natural com Adão da parte de todos os homens, através da geração ordinária, seguida pela imputação a eles de seus pecados nele, que é um ato de justiça divina. 

Em segundo lugar, há a união natural do Filho de Deus com todos os homens, através da encarnação (na qual Sua humanidade foi de forma sobrenatural produzida da Virgem Maria pela operação do Espírito Santo, e, por Seu próprio ato, tomado em conjunção com Sua Pessoa divina), seguido pela imputação a Ele dos pecados da raça inteira, que foi um ato de graça divina. Disto veio a provisão de uma justiça infinita para todos os homens, consistindo, negativamente, na satisfação propiciatória que a santidade divina exigia para o pecado, e positivamente, em inteira conformidade à lei divina como visto na perfeita obediência de Cristo. 

Em terceiro lugar, há a união espiritual dos eleitos com o Filho encarnado, agora glorificado, através da incorporação, segundo a qual, tendo o Espírito Santo infundido neles, eles são feitos membros desse corpo místico do qual Cristo é a Cabeça. Isto, também, é um ato de graça divina, e é seguido pela imputação da justiça completa mencionada acima, para que o crente mude sua condenação em Adão para uma justificação santificada em Cristo.

As Escrituras dessa forma declaram dois grandes fatos soteriológicos: que o Filho eterno se tornou um com todos os homens ao encarnar-se, e que aqueles que crêem nele se tornam um com Ele ao receber Seu Espírito. Estas duas uniões – a hipostática e a mística – são os focos da doutrina da Salvação da Bíblia. Dentro de seu domínio encontram-se todas as verdades relacionadas à redenção provida e a redenção aplicada. Foi provida em favor da raça, mas é aplicada somente aos eleitos. Por que a provisão é mais ampla do que a aplicação é considerada em outro lugar neste ensaio.

1 comentário:

  1. Por imputação, entendemos o ato de atribuir a outra pessoa a culpa que nos cabe. biblicamente falando podemos dizer que os nossos pecados foram imputados a Cristo e que a justiça de Jesus nos foi imputada. Dai, a possibilidade da nossa eterna salvação
    A morte de Jesus, no calvário, foi consumada para que se tornasse possível a expiação de todos os nossos pecados.. dessa forma, expiados todos os nossos pecados por Cristo, somos feitos justiça de Deus nele. se realmente cremos nessa verdade, estamos verdadeiramente salvos, livres da condenação eterna

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