quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

J. C. Ryle (1816-1900): Notas sobre João 3:16

14 .- [Como Moisés levantou ... serpente ... assim importa, etc] Neste versículo nosso Senhor segue demonstrando para Nicodemos outra "coisa celestial", isto é, a necessidade de sua própria crucificação. Nicodemos pensou provavelmente, como a maioria dos judeus, que quando o Messias surgisse, Ele viria com poder e glória, para ser exaltado e honrado pelos homens. Jesus diz a ele que está longe de ser este o caso.  O Messias deveria ser "cortado" na Sua primeira vinda, e colocado  em aberta vergonha por ser pendurado no madeiro. Ele ilustra isso por um evento bem conhecido na história das peregrinações de Israel - a história da serpente de bronze. (Num 21:9) "Você está me esperando para me levar ao poder e restaurar o reino de Israel? Lançai isso longe como uma expectativa vã. Eu vim para fazer uma obra muito diferente. Eu vim para sofrer e para oferecer a mim mesmo como um sacrifício pelo pecado. "

A menção de Moisés, de quem os fariseus pensavam tanto, foi eminentemente calculada para prender a atenção de Nicodemos. "Mesmo Moisés, em quem vós confiais, forneceu um tipo muito vívido da minha grande obra sobre a terra – a crucificação."

[Assim importa que o Filho do Homem seja levantado] A expressão "Filho do Homem", foi, sem dúvida, destinada a lembrar Nicodemos da profecia de Daniel sobre o Messias. A palavra grega traduzida por "importa", significa "é necessário que" . É necessário a fim de que as promessas de Deus sobre um Redentor possam ser cumpridas - os tipos dos sacrifícios do Antigo Testamento serem concluidos - a lei de Deus ser satisfeita - e um caminho para a misericórdia de Deus ser fornecido. Visando tudo isso, o Messias deve sofrer em nosso lugar. A expressão "levantado", parece-me mais decididamente significar "levantado na cruz." Por um lado achamos isso muito explicado neste Evangelho. (João 12:32, 33). Por outro lado a ilustração da serpente de bronze torna absolutamente necessário explicá-la assim. Aplicar a frase, como Calvino e os outros fazem, como a "necessidade de levantar e exaltar a expiação de Cristo na doutrina cristã, parece-me um erro. É desnecessariamente arrastar uma idéia a qual as palavras não tinham a intenção de transmitir. Isso é verdade, sem dúvida, e uma verdade abundantemente ensinada nas Escrituras, mas não a verdade desse texto.

Os principais pontos de semelhança na comparação - "Como Moisés levantou a serpente no deserto" - forma um assunto que requer cuidadoso manuseio. O levantamento da serpente de bronze para o alívio de Israel, quando mordidos por serpentes, é evidentemente selecionado por nosso Senhor, como uma ilustração de sua própria crucificação pelos pecadores. Mas quão longe podemos levar essa ilustração? Onde iremos parar? Quais são os pontos exatos em que o tipo e o antítipo se encontram? Essas questões exigem consideração.


Alguns vêem um significado no "bronze" do qual a serpente foi feita, como um metal brilhante, um metal forte, etc, etc . Eu não consigo ver isso. Nosso Senhor nem sequer menciona o bronze.

Outros vêem na "serpente" pendurada na haste, um tipo do diabo, a antiga serpente, ferida pela morte de Cristo na cruz, e abertamente triunfando sobre ela. (Col 2:15..) Eu não consigo ver tudo isso. Parece-me que confundem e misturam duas verdades bíblicas, as quais devem ser mantidas separadas. Além disso, há algo revoltante na idéia, de que, a fim de serem curados, os israelitas tinham de olhar para uma figura do diabo.

Alguns vêem em "Moisés" levantando a serpente, um tipo da lei de Deus exigindo o pagamento de suas demandas, e tornando-se a causa da morte de Cristo na cruz. Sobre isso eu me contentarei em dizer que não estou convencido de que essa idéia estava na mente de Cristo.

Os pontos de semelhança me parecem ser estes:

(A) Como os israelitas estavam feridos, em aflição e morrendo por causa das mordidas das serpentes venenosas, assim está o homem em grande perigo espiritual e morrendo por causa dos efeitos venenosos do pecado.

(B) Como a serpente de bronze foi levantada sobre uma haste, à vista do acampamento de Israel, assim Cristo deveria ser levantado na cruz publicamente, e à vista de toda a nação, na Páscoa.

(C) Como a serpente, levantada na haste, foi uma imagem do que havia envenenado os israelitas, assim Cristo teve em si mesmo nenhum pecado, e ainda assim foi feito e crucificado "em semelhança de carne pecaminosa" e contado como pecado. (Rm 8:3). A serpente era uma serpente sem veneno, e Cristo era um homem sem pecado. A única coisa que veriamos especialmente no Cristo crucificado, é o nosso pecado colocado sobre Ele, e Ele contado como um pecador, tratado como um pecador e castigado como um pecador, para a nossa redenção. De fato, vemos na cruz nossos pecados punidos, crucificados, suportados, e carregados por nosso Redentor.

(D) Finalmente, como o único caminho pelo qual os israelitas obtiveram o alívio da serpente foi olhando para ela, assim o único caminho para obter benefício de Cristo é olhando para Ele pela fé. O mais fraco olhar trouxe cura para um israelita, e a mais fraca fé, se verdadeira e sincera, traz a salvação para os pecadores.

Deve ser cuidadosamente observado, que parece impossível conciliar este versículo com aquela divindade moderna, que não vê nada na morte de Cristo, a não ser um grande ato de auto-sacrifício, e que nega a substituição de Cristo por nós na cruz, e a imputação dos nossos pecados a Ele. Tal divindade murcha um versículo como esse inteiramente, e corta a vida, o coração e a medula de seu significado.

A não ser que as palavras sejam violentamente arrancadas de seu sentido ordinário, a ilustração diante de nós aponta diretamente para duas grandes verdades do Evangelho. Uma delas é que a morte de Cristo na cruz era para ter um efeito medicinal de conferir saúde em nossas almas, e que havia algo nele muito acima de um mero exemplo de mártir. A outra verdade é que quando Cristo morreu na cruz, Ele foi tratado como nosso Substituto e Representante, e punido, por meio da imputação de nossos pecados, em nosso lugar. Aquilo que Israel viu na haste, e pela qual tiveram saúde, foi uma imagem da serpente que os mordera.

O objeto que os cristãos devem ver na cruz, é uma Pessoa divina, feita pecado e maldição por eles, e permitindo que o próprio pecado que envenenou o mundo fosse imputado a Ele, e colocado sobre sua cabeça.- É um trabalho fácil zombar que as palavras “sacrifício vicário” e “mérito imputado” não são encontradas em nenhuma parte das Escrituras. Mas não é tão fácil refutar o fato de que as "ideias" são constantemente encontradas na Bíblia.

Não se deve abusar do uso da serpente de bronze, neste versículo, como uma ilustração da morte de Cristo e de seu propósito, e fazer dela uma desculpa para transformar todos os incidentes da história de Israel no deserto em uma alegoria. É muito importante que não se atribua um significado alegórico aos fatos da Bíblia sem autoridade. Coisas como o maná, a rocha ferida e a serpente de bronze, são alegorizadas para nós pelo Espírito Santo. Mas onde o Espírito Santo não apontou nenhuma alegoria, devemos ser muito prudentes nas nossas afirmações de que a alegoria existe. As observaçãos de Bucer sobre este tema merecem leitura.

15.- [Para que todo aquele que crê ...não pereça...vida] Neste versículo o Senhor declara a Nicodemos o grande fim e propósito pelo qual o Filho do homem seria "levantado" na cruz, e a maneira pela qual os benefícios da Sua crucificação se tornam nossos. Na interpretação do versículo, devemos cuidadosamente lembrar que a comparação da serpente levantada no deserto deve ser carregada até o final da sentença. O Filho do homem deve ser levantado na cruz, para que todo aquele que Nele crê, ou olhe para Ele pela fé, como os israelitas olharam para a serpente de bronze, não pereça no inferno.

A expressão "todo aquele que", merece atenção especial. Ela poderia ter sido tão bem traduzida por "cada um." Destina-se a mostrar-nos a largura e amplitude das ofertas de salvação de Cristo. Elas são para "cada um", sem exceção, que "crer".

A expressão "Nele crê" é profundamente importante. Ela descreve um ato da alma do homem, o qual é necessário para lhe dar um interesse em Jesus Cristo. Não é uma mera crença da mente de que há tal pessoa como Jesus Cristo e que Ele é o Salvador. É uma crença do coração e da vontade. Quando uma pessoa, sentindo sua desesperada necessidade por causa do pecado, foge para Jesus Cristo e confia Nele, se inclina sobre Ele, e compromete sua alma inteiramente a Ele como seu Salvador e Redentor, é dito, na linguagem do texto que "Nele crê" - Quanto mais simples forem nossas visões de fé, melhor. Quanto mais firmemente mantivermos em mente os israelitas olhando para a serpente de bronze, mais entenderemos as palavras diante de nós. "Crer" não é nem mais nem menos do que o olhar do coração.

Todo aquele que olhou para a serpente de bronze foi curado, por mais doente que estivesse e por mais débil que fosse seu olhar. Da mesma forma, todo aquele que olha para Jesus pela fé é perdoado, por maior que tenha sido seu pecado e por mais débil que seja sua fé. - O israelita olhou? Esse foi o único requisito para ser curado da mordida das serpentes.- O pecador crê? Esse é o único requisito para ser justificado e perdoado*. - Olhando para Moisés, para o tabernáculo, para a própria haste sobre a qual a serpente foi pendurada, ou olhando para qualquer outra coisa, que não fosse a serpente de bronze, os israelitas picados não seriam curados. Da mesma forma, olhando para qualquer outra coisa que não seja o Cristo crucificado, não importa o mais santo que o objeto contemplado possa ser, o pecador não pode ser salvo.

*Tradução Alternativa: Essa é a única questão no âmbito de ser curado da mordida das serpentes. - O pecador crê? Essa é a única questão no âmbito de ser justificado e perdoado

A expressão "não pereça, mas tenha a vida eterna", é peculiarmente forte. Como o israelita que olhou para a serpente de bronze, não só não morreu de seus ferimentos, mas recuperou a saúde completa, assim também o pecador que olha para Jesus, não só escapa do inferno e da condenação, mas tem uma semente de vida eterna de uma só vez colocada no seu coração , recebe um título completo para uma vida eterna de glória e bem-aventurança no céu, e entra nessa vida depois da morte – A salvação do Evangelho é extremamente completa. Não se trata apenas de ser perdoado. É ser contado completamente justo, e ser feito um cidadão do céu. Não é apenas uma fuga do inferno, mas a recepção de um título para o céu. Tem sido bem observado, que o Antigo Testamento geralmente promete apenas "longos dias", mas o Evangelho promete "vida eterna".

16 .- [Porque Deus amou o mundo de tal maneira, etc] Nosso Senhor, neste versículo, mostra  para Nicodemos outra "coisa celestial". Nicodemos, provavelmente pensava, como muitos judeus, que os propósitos de misericórdia de Deus eram inteiramente confinados ao Seu povo escolhido, Israel, e que quando o Messias surgisse, Ele surgiria apenas para o especial benefício da nação judaica. Nosso Senhor, aqui declara a ele que Deus ama todo o mundo, sem exceção alguma; que o Messias, o Filho unigênito de Deus, é a dádiva do Pai para toda a família de Adão, e que cada um, quer judeu ou gentio, que Nele crê  para a salvação, pode ter vida eterna. - É impossível conceber declaração mais surpreendente para os ouvidos de um rígido fariseu! Um versículo mais maravilhoso não pode ser encontrado na Bíblia!

Que Deus amaria um mundo tão perverso como este, e não o odiaria, - que Ele o amaria de modo a prover salvação - que, a fim de prover salvação Ele daria, não um anjo, ou qualquer ser criado, mas o dom inestimável que é o Seu Filho unigênito - para que esta grande salvação fosse oferecida gratuitamente a todo aquele que crê, - tudo, tudo isso é realmente maravilhoso! Isso era certamente uma "coisa celestial."

As palavras, "Deus amou o mundo", tem recebido duas interpretações muito diferentes. A importância do tema nos dias de hoje torna desejável indicar ambos os pontos de vista de forma completa.

Alguns pensam, como Hutcheson, Lampe, e Gill, que o "mundo" significa os eleitos de Deus de todas as nações, quer judeus ou gentios, e que o "amor" com o qual se diz que Deus os ama é aquele amor eterno com o qual os eleitos foram amados antes do ínicio da criação, e pelo qual seu chamado, justificação, preservação e salvação final são completamente assegurados.- Essa visão, embora apoiada por muitos e grandes teólogos, não me parece ser o que nosso Senhor queria dizer.

"O mundo" é, sem dúvida, um nome dado algumas vezes para o "ímpio" exclusivamente. Mas eu não vejo isso como um nome dado aos santos.- Por outro lado, interpretar a palavra "mundo" como “somente os eleitos” é ignorar a distinção que, a meus olhos, é claramente estabelecida no texto entre toda a humanidade e aqueles dessa humanidade que "crêem”. Se o "mundo" significa apenas a porção crente da humanidade, teria sido o bastante dizer: "Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que o mundo não pereça." Mas nosso Senhor não diz isso. Ele diz, "para que todo aquele que Nele crê”.

Por último, confinar o amor de Deus aos eleitos é tomar uma dura e estreita visão do caráter de Deus, e coloca razoavelmente o cristianismo aberto às acusações que o retratam como cruel e injusto para com os ímpios. Se Deus não tem consideração por ninguém, a não ser Seus eleitos, e não se importa com ninguém além deles, como julgará Deus o mundo? Eu creio no amor eletivo de Deus Pai tão fortemente quanto qualquer um. Eu considero o amor especial com que Deus ama as ovelhas que Ele tem dado a Cristo desde toda a eternidade, como a mais abençoada e confortadora verdade, e de mais alegria e beneficio aos crentes. Eu digo apenas, que não é a verdade deste texto.

O verdadeiro sentido das palavras: "Deus amou o mundo" eu creio ser este: O "mundo" significa toda a raça da humanidade, tanto santos quanto pecadores, sem qualquer exceção. A palavra, na minha opinião, é assim utilizada em João 1:10, 29; 6:33, 51; 8:12; Rom. 3:19; 2 Cor. 5:19, 1 João 2:2; 4:14. O "amor" de que se fala aqui é o amor de piedade e compaixão com o qual Deus considera todas as Suas criaturas, e especialmente considera a humanidade. É o mesmo sentimento de "amor" que aparece no Salmo 145:9, em Ezequiel. 33:11, João 6:32, Tito 3:4, 1 João 4:10, 2 Ped. 3:9, 1 Tm. 2:4. É um amor inquestionavelmente distinto e separado do amor especial com que Deus considera Seus santos. É um amor de piedade e não de aprovação ou complacência. Mas não é menos que um amor real. É um amor que limpa Deus de injustiça no julgamento do mundo.

Eu estou muito familiarizado com as objeções comumente levantadas contra a teoria que acabo de pronunciar. Eu não encontro nenhum peso nelas, e eu não temo em respondê-las. Aqueles que confinam o amor de Deus exclusivamente aos eleitos parecem ter uma visão estreita e contraída do caráter de Deus e de Seus atributos. Eles recusam a Deus aquele atributo de compaixão com o qual até um pai terrestre pode considerar um filho perdulário, e pode lhe oferecer perdão, apesar de sua compaixão ser desprezada e suas propostas recusadas. Eu tenho chegado à conclusão de que os homens podem ser mais sistemáticos em suas declarações do que a Bíblia, e talvez se deixem levar à grave erro pela idólatra veneração de um sistema. As seguintes citações [...] do bispo Davenant, mostrará que o ponto de vista que defendo não é novo.

"O amor geral de Deus para com a humanidade é tão claramente testemunhado na Sagrada Escritura, e assim demonstrado pela diversos efeitos da bondade e da misericórdia de Deus estendida a cada homem em particular neste mundo, que duvidar disso seria infidelidade, e negar isso seria clara blasfêmia". Davenant’s Answer to Hoard, p. 1.

"Deus não odeia o que Ele mesmo criou. E ainda é mais verdadeiro que Ele odeia o pecado em qualquer criatura, e odeia a criatura infectada com o pecado, de tal forma como o ódio pode ser atribuído a Deus. Apesar de tudo isso, Ele amou geralmente de tal maneira a humanidade, caída em Adão, que deu Seu Filho unigênito, para que o pecador, seja quem for, que crer Nele não pereça, mas tenha a vida eterna. E esta vida eterna é assim provida para o homem por Deus, que nenhum de Seus decretos pode levar qualquer um lá sem fé e arrependimento, e nenhum dos Seus decretos pode afastar qualquer homem que se arrepender e crer. Quanto à medida do amor de Deus exibida nos efeitos externos ao homem, não deve ser negado que Deus derrama a Sua graça mais abundantemente em alguns homens do que em outros, e trabalha mais poderosamente e mais eficazmente no coração de alguns homens do que no de outros, e isso a partir somente de Sua vontade e prazer. Mas ainda assim, quando esse mais especial amor não é estendido, Seu menos especial amor não é restrito a externas e temporais misericórdias, mas abrange internas e espirituais bênçãos, que levariam os homens à bem-aventurança eterna, se sua voluntária maldade não os impedisse".- Davenant’s Answer to Hoard, p.469.

Forque a intenção ou designação de Deus é geral, e é claramente revelada nas Sagradas Escrituras, apesar da absoluta e não frustável intenção de Deus com relação ao dom da fé e à vida eterna para algumas pessoas ser especial e limitada somente aos eleitos." —Davenant’s Opinion on the Gallican Controversy.

Calvino observa neste texto: 

"Cristo trouxe vida, porque o Pai Celestial ama a raça humana, e deseja que eles não pereçam". 

Novamente ele diz: 

"Cristo empregou o termo universal 'todo aquele que' tanto para convidar indiscriminadamente todos para participar da vida, quanto para cortar todas as desculpas dos incrédulos. Esse também é o sentido do termo “mundo”. Embora não haja nada no mundo que seja digno do favor de Deus, ainda assim Ele Se mostra reconciliado ao mundo todo, quando Ele convida todos os homens, sem excepão, à fé de Cristo "
.
A mesma visão do "amor" de Deus e do "mundo", neste texto, é tomada por Brentius, Bucer, Calovius, Glassius, Chemnitius, Musculus, Bullinger, Bengel, Nifanitis, Dyke, Scott, Henry, e Manton

A expressão “de tal maneira”, nesse versículo, suscitou muitos comentários, por conta de sua profundidade de significado. Ela, sem dúvida, significa "grandemente, muito, tão custoso". O Bispo Sanderson, citado por Ford, observa: "Quanto que 'de tal maneira' contém, nem a língua ou a sagacidade do homem pode alcançar: nada expressa ela melhor para a vida, do que a obra que ela própria realiza"

[Que deu Seu Filho unigênito.] A dádiva de Cristo, deve aqui ser mencionado, é o resultado do amor de Deus ao mundo, e não a causa. Dizer que Deus nos ama porque Cristo morreu por nós, é, certamente, miserável teologia. Mas dizer que Cristo veio ao mundo em conseqüência do amor de Deus, é a verdade bíblica.

A expressão "Ele deu" é algo notável. Cristo é o dom de Deus Pai para um mundo perdido e pecaminoso. Ele foi dado de uma forma geral para ser o Salvador, o Redentor, o Amigo dos pecadores - para fazer uma expiação suficiente por todos - e para prover uma redenção grande o suficiente para todos. Por esse motivo, o Pai livremente o deu para ser desprezado, rejeitado, zombado, crucificado e contado como culpado e maldito por nossa causa. Está escrito que Ele foi "entregue por nossas ofensas" e que "Deus não o poupou, mas o entregou por todos nós". (Rom 4:25; 8:32..) Cristo é o dom "de Deus, " do qual se fala para a mulher samaritana (Jo. 4:10), e o "dom inefável” de que fala São Paulo. (2 Cor 9:15) Ele próprio disse aos judeus ímpios: "Meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu." (Jo 6:32) Este último texto, nota-se, foi aquele com o qual Erskine silenciou a Assembléia Geral, na Escócia, quando foi acusado de oferecer Cristo também livremente aos pecadores.

Deve ser observado que o Senhor chama a si mesmo de "o Filho unigênito de Deus" neste versículo. Apenas um versículo antes desse, Ele chamou a Si mesmo de "Filho do homem." Ambos os nomes foram utilizados a fim de incutir na mente de Nicodemos as duas naturezas do Messias. Ele não era apenas o Filho do homem, era também o Filho de Deus. Mas é surpreendente observar que precisamente as mesmas palavras são usadas em ambos os lugares sobre a fé em Cristo. Se queremos ser salvos, devemos crer Nele, tanto como Filho do Homem quanto como Filho de Deus.

[Para que todo aquele que crê, etc....vida.] Estas palavras são exatamente as mesmas do versículo anterior. Por que nossos tradutores teriam vertido a mesma palavra grega por “everlasting” em um lugar, e "eternal" no outro, é difícil de dizer.(Nota do tradutor:  na versão em inglês do autor, no versículo 15 é usada a palavra "eternal" para eterna e no versículo 16 é usada a palavra "everlasting" para eterna)  Em Mat. 25:46, eles fizeram a mesma coisa.

A repetição dessa gloriosa expressão "todo aquele que crê" é muito instrutiva. Por um lado, serve para mostrar que [mesmo] o amor de Deus [sendo] tão poderoso e amplo, provará ser inútil para todo aquele que não crer em Cristo. Deus ama todo o mundo, mas Deus não salvará ninguém no mundo que se recuse a crer em Seu Filho Unigênito. - Por outro lado, nos mostra o grande ponto para o qual cada cristão deve direcionar sua atenção.

Ele deve ver que para isso que ele crê em Cristo. É mero desperdício de tempo estarmos constantemente nos perguntando se Deus nos ama, e se Cristo morreu por nós, é grosseira ignorância das Escrituras nos preocuparmos com essas questões. A Bíblia nunca diz aos homens para olhar para estas questões, mas os ordena a crer. Salvação é sempre ensinada não se voltando sobre o ponto "Cristo morreu por mim?", mas sobre o ponto "Eu creio em Cristo?" Se os homens não “têm vida eterna”, isso nunca é porque Deus não os amou, ou porque Cristo não foi dado por eles, mas porque eles não creram em Cristo.

Ao deixar este versículo, eu observo que a idéia mantida por Erasmo, Olshausen, Wetstein, Rosenmuller, e outros, de que ele não contém as palavras do Senhor, e que a partir deste versículo até o 21, temos os comentários ou observações de João, parece-me completamente destituída de fundamento, e não suportada  por um único argumento digno de nota.

Que nosso Senhor não teria usado a terceira pessoa para falar de Si mesmo não é argumento. Nós o encontramos com freqüência falando de Si mesmo na terceira pessoa. Veja, por exemplo, João 5:19, 29. Não há literalmente nada a ganhar com a adoção dessa teoria, enquanto ela contradiz a crença comum de quase todos os crentes em todas as épocas do mundo.

Flacius observa que este versículo e os dois anteriores compreendem todas as causas da justificação: 

(1) a causa remota e eficiente: o amor de Deus; 
(2) a causa próxima eficiente: o dom do Filho de Deus, 
(3) a causa material: a exaltação de Cristo na cruz; 
(4) a causa instrumental: a fé, 
(5) a causa final: a vida eterna.

17 .- [Deus não enviou ...condenar... mundo] Neste versículo nosso Senhor revela a Nicodemos outra "coisa celestial" .  Revela a ele o objeto principal da vinda do Messias ao mundo. Não era para julgar os homens, mas para morrer por eles; não para condenar, mas para salvar.

Tenho a forte impressão de que quando nosso Senhor falou estas palavras, Ele tinha em vista a profecia de Davi sobre o Messias despedaçando as nações com vara de ferro, e a profecia de Daniel sobre o julgamento, onde ele fala dos tronos sendo derrubados, e o Ancião de Dias julgando o mundo. (Sl 2:6-9;. Dan 7:9-22.) Eu acredito que Nicodemos, como a maioria dos judeus, estava cheio com a expectativa de que quando o Messias viesse, Ele viria com poder e grande glória, e julgaria todos os homens. Nosso Senhor corrige essa noção neste versículo. Ele declara que a primeira vinda do Messias não era para julgar, mas para salvar o povo dos seus pecados. Ele diz em outro lugar: "Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvar o mundo." (João 12:47) A palavra grega para julgar e condenar, deve ser lembrado, é a mesma. O julgamento e condenação dos ímpios, o Senhor queria nos fazer conhecer, não é a obra do primeiro advento, mas do segundo. A obra especial do primeiro advento era buscar e salvar o que estava perdido.

[Para que ... mundo ... por ele .... salvo.] Esta frase deve ser claramente interpretada com alguma qualificação. Ela estaria em contradição com outros textos claros da Escritura, se nós a tomassemos como significando: "Deus enviou Seu Filho ao mundo, para que todo o mundo pudesse finalmente ser salvo por meio Dele, e ninguém se perca." De fato, nosso Senhor declara no versículo seguinte que "aquele que não crê já está condenado."

O significado da frase, evidentemente, é que "todo o mundo pode ter uma porta de salvação aberta por Cristo – para a salvação possa ser provida para todo o mundo, - e para que assim qualquer um no mundo, crendo em Cristo, possa ser salvo" . Nesta visão, é como a expressão de São João: "O Pai enviou seu Filho como Salvador do mundo". (1 João 4:14.)

A expressão "Deus enviou", nesse versículo, não deve ser  negligenciada.  Ela é muito frequentemente aplicada, no evangelho de São João, ao nosso Senhor. Ao menos 38 vezes nós encontramos Ele falando de Si mesmo como "Quem Deus enviou".  É provavelmente dessa expressão que São Paulo deriva o nome peculiar que dá ao nosso Senhor "O Apóstolo da nossa confissão" (Heb 3:1).  Apóstolo significa simplesmente "o enviado".

A prontidão do homem natural em todo lugar de considerar Cristo como um Juiz mais do que como um Salvador, é um fato curioso.   Todo o sistema da Igreja Católica Romana é cheio dessa idéia.  Pessoas são ensinadas a ter medo de Cristo e fugir para a Virgem Maria! Protestantes ignorantes também não são melhores.  Eles frequentemente consideram Cristo como um tipo de Juiz, cuja demanda eles terão de satisfazer no último dia, mais do que como um atual e pessoal Salvador e Amigo.  Nosso Senhor parece ter previsto esse erro e o corrigiu nas palavras desse texto. 

Calvino observa sobre esse versículo: 

“Sempre que nossos pecados nos pressionarem, sempre que Satanás nos levar ao desespero, nós devemos sustentar esse escudo—que Deus não está disposto a que sejamos esmagados com a destruição eterna, porque Ele designou Seu Filho para ser a salvação do mundo".

Fonte: J. C. Ryle, Expository Thoughts on the Gospels,
download: http://www.tracts.ukgo.com/ryle_gospel_of_john.htm
Tradução:  Emerson Campos Pinheiro.


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