terça-feira, 24 de agosto de 2010

John Murray: Comentário sobre Romanos 2:4

“Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento?”


Neste versículo, temos outra pergunta, introduzida por “ou”, e a palavra “desprezas” é correlata a “pensas”, no versículo 3. O propósito deste “ou” não é sugerir uma alternativa; mas é termo retórico, como as próprias perguntas. E o efeito disso é premir sobre os judeus, em intensidade crescente, a impiedade da qual se mostravam culpados. 

Em outras palavras, não são formas alternativas de interpretar as atitudes dos judeus e sim diferentes maneiras de dizer qual é a atitude deles. E o versículo 5 demonstra que o apóstolo não entretinha qualquer dúvida a respeito do desprezo votado pelos judeus às riquezas da bondade de Deus. Paulo estava como que tratando com os judeus empedernidos e, com intensidade crescente de depreciação, mostrou-lhes a perversão de que se fizeram culpados.


“A riqueza” da bondade de Deus alude à abundancia e magnitude da bondade proporcionada aos judeus. A força da expressão indica que a benignidade do pacto que os judeus participavam está aqui em foco (cf.3.2;9.4,5). E o mesmo pode ser dito com relação a “tolerância” e “longanimidade”. O vocábulo “riqueza” governa esses três termos. A abundancia da “tolerancia e longanimidade” de Deus para com Israel fora exemplificada por diversas vezes na história do Antigo Testamento, mas o apóstolo devia estar pensando particularmente, se não exclusivamente, sobre a tolerância e a longanimidade demonstradas para com os judeus no tempo em que ele escrevia carta. Pois, ao rejeitarem a graça e a bondade manifestadas em Cristo, os judeus deram o máximo de razão para a execução da ira de Deus e de uma punição no mais alto grau. 

Somente “a riqueza” da tolerância e da longanimidade poderia explicar a preservação a eles conferida. Não devemos insistir indevidamente, estabelecendo uma distinção artificial entre “tolerância” e “longanimidade”. Juntas, essas duas palavras expressão a idéia de que Deus suspende o castigo e reprime a execução da ira. Quando ele exerce tolerância e longanimidade, não se vinga do pecado, executando imediatamente a ira. A tolerância e a longanimidade, por conseguinte, atuam sobre a ira e sobre a punição merecida pelo pecado, restringindo Deus na execução do castigo que o pecado merece. 

É mister notarmos que o apóstolo não pensava nessa restrição como algo exercido à parte da riqueza, da bondade, da benignidade e da amabilidade de Deus. Há uma complementação que revela a magnitude da bondade de Deus e da qual os dons se mostram como expressão dos privilégios do pacto. 6 É um conceito errado a respeito da tolerância e da longanimidade de Deus o que separa tais dons da gentileza de disposição e beneficência implícitos na bondade de Deus.

O termo “desprezas” aponta para o ato de subestimar a significação de algo, de pensar com superficialidade a respeito de alguma coisa, deixando assim de prestar-lhe o devido valor. E pode também assumir o significado de zombaria ou menosprezo. Os judeus, a quem Paulo se dirigia, na verdade haviam falhado, não valorizando a riqueza da bondade da qual eram beneficiários; e, sempre que os dons de Deus são subestimados, na verdade, eles são menosprezados. 

Entretanto, quando meditamos sobre a incredulidade que era o tema do apóstolo, a incredulidade dos judeus que haviam rejeitado a revelação da graça na pessoa de Cristo, torna-se necessário atribuir-lhes os mais expressos e diretos menosprezos e zombaria. É nesses termos que teremos de interpretar a indagação de Paulo “ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento?” 

Não devemos entender tais palavras como atenuação de culpa. Paulo não estava justificando a ofensa sob a alegação de ignorância por parte daqueles a quem se dirigia; pelo contrário, estava expandindo a base de sua acusação. De fato estava dizendo: “Perdestes a grande lição e o propósito da bondade de Deus no que concerne à vossa responsabilidade”. “Ignorando”, neste caso, tem a força de “não considerando”, 7deixando implícito que o propósito da bondade de Deus era tão evidente, que tornaria inescusável o não compreendê-lo.

“Arrependimento” significa mudança de mentalidade e se refere àquela transformação registrada em nossa consciência, através da qual, em nossa mente, sentimentos e vontade, nos voltamos do pecado para Deus. O arrependimento está vinculado a fé, com uma atividade que procede da fonte de vida do crente, sendo para remissão de pecados e para a vida eterna (cf. At 20.21; Hb 6.1; Mc 1.4; Lc 24.47; At 2.38; 3.19; 11.18). 

A assertiva de que a bondade de Deus conduz ao arrependimento não deve ser enfraquecida, a ponto de significar apenas que ela nos mostra o arrependimento. Ao termo “conduz” devemos outorgar sua verdadeira força, ou seja, a de “transportar” (cf. 8.14; 1Co 12.2; 1Ts 4.14; 2Tm 3.6). O apóstolo não estava dizendo que todos os beneficiários da bondade de Deus são levados ao arrependimento. O que está subentendido em sua acusação contra os judeus incrédulos é o reverso disso; os judeus eram participantes da riqueza da bondade, da tolerância e da longanimidade de Deus e, apesar disso, mantinham – se na impenitência. 

Tampouco o apóstolo estava falando daquela graça interna e eficaz, que produz o fruto do arrependimento. Mas dizia que a bondade de Deus, incluindo, sem dúvida, sua tolerância e longanimidade, tem a finalidade de levar eficazmente a pessoa ao arrependimento (cf. 2Pe 3.9). E não somente isso. Os presunçosos judeus interpretavam a singular bondade de Deus para com eles como a garantia de imunidade aos critérios pelos quais os outros homens seriam julgados e reivindicavam para si mesmos indulgência da parte de Deus; os gentios necessitavam de arrependimento, eles não

O que o apóstolo estava dizendo é que a bondade de Deus, ao ser devidamente avaliada, conduz ao arrependimento; ela foi planejada para induzir ao arrependimento, aquela atitude que os judeus consideravam ser necessária apenas aos gentios. A bondade de Deus tem como intuito e propósito somente isso; quando devidamente compreendida, esse é o seu efeito invariável. A condenação dos judeus reside no fato de não compreenderem tão simples lição.

Notas:

6 Ver passagens que ilustram o sentido de xpnotótns – Mt 11.30; Lc 6.35; Rm 11.22; Gl 5.22; Ef 2.7; 4.32; Cl 3.12; 1Pe 2.3.
7 Cf. Philippi, ad loc.

Fonte: Murray, John.  Comentário Biblico Fiel - Romanos.  Editora Fiel.