sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Norman Douty: Deus Ama Somente Alguns Pecadores?

Arthur W. Pink (1886-1952), cujos escritos têm sido muito influentes entre os batistas calvinistas americanos, sustenta que Deus não ama todo o mundo![1] Ele pergunta, 

“É verdadeiro que Deus ama aquele que está desprezando e rejeitando Seu santo Filho?” 

Nós respondemos: E quanto a Saulo de Társo? Deus não o amou apesar de sua perseguição a Jesus, quando ele respirava ameaças e mortes contra os discípulos? Além disto respondemos: E quanto a Judas Iscariotes? Deus consente que Cristo diga, “Amai aos vossos inimigos,” e então retém Seu próprio amor de Judas? Certamente, Jesus amou Judas.[2] Seu tratamento amoroso com o apóstolo constantemente escondia sua traição dos onze, a ponto de nenhum deles parecer ter suspeitado dele. Ele o colocou no lugar de honra na Última Ceia e fez um apelo final a ele no Getsêmani, chamando-o “Amigo.”[3] Mas o coração de Jesus revelava o coração do próprio Deus; de forma que Deus deve ter amado Judas também. Mas se Deus amou Judas, que pior pecador poder haver para Ele odiar?


Pink acredita que ele confirma sua negação de que Deus não ama todo o mundo citando tais Escrituras como Sl 5.5 (“Detestas a todos os que praticam a maldade”) e Rm 9.13 (“Amei a Jacó, e odiei a Esaú”). Se estes textos significam o que Pink os leva a significar, então Deus deve ter odiado Saulo de Tarso apesar de tudo; todavia Ele o tratou com o mais puro amor. Além disso, Ele não deve ter tido nenhum bem para conceder a Esaú; todavia Ele até o abençoou (Gn 27.39-40; Hb 11.20), e tal benção demonstrou amor por ele (Dt 10.18).

Como, então, devemos entender estes textos? Em resposta podemos dizer: Como devemos entender as declarações de que Deus se arrependeu “de haver feito o homem na terra” (Gn 6.6), e que Ele foi temeroso (Dt 32.27)? Em Nm 23.19 lemos que Deus não é filho do homem “para que se arrependa;” e em muitas passagens que aqueles que nele confiam não devem temer, que implica que Ele próprio não está em perigo, e que por essa razão nada teme. Assim Deus apenas pareceu estar arrependido e pareceu estar temeroso, mas, na realidade, não estava. Suas ações eram tais como em que um homem empregaria se estivesse arrependido ou temeroso, e assim estas emoções foram atribuídas a Ele metaforicamente, mas não devem ser tomadas como propriamente nele. John Owen acertadamente diz: “Atribuir afeições (emoções) propriamente a Deus é fazê-lo fraco, imperfeito, dependente, mutável e impotente.”[4] Assim como não devemos endeusar o homem, também não devemos humanizar Deus.

Somos, conseqüentemente, obrigados a entender o ódio de Deus dos homens como significando nada além do que Suas ações desfavoráveis para com eles. Assim Ele detesta “todos os que praticam a maldade” em que Ele traz punição sobre eles mais cedo ou mais tarde. Mas Ele traz tal punição na calma administração de um governo justo, não no calor de vingança pessoal. Do mesmo modo, Deus odiou a Esaú, tirando dele o lugar na aliança patriarcal concedida a Jacó, uma aliança com respeito a benefícios temporais, não eternos. O verso é usado num sentido comparativo, como em Lc 14.26.

Uma expressão cognata para o ódio divino é a da ira divina – algo freqüente na Escritura. Aqui, também, a antiga máxima teológica se aplica: que as coisas faladas de Deus segundo a maneira dos homens devem ser entendidas dele segundo a maneira de Deus. Owen expõe este princípio, em referëncia à ira de Deus, nos capítulos 4 e 29 de sua Vindiciae Evangelicae, onde ele responde a Biddle, o sociniano. Ele aponta que quando a Bíblia atribui ira a Deus, ela não denota a forte emoção que observamos na raiva humana, mas significa ou Sua justiça interna ou os efeitos externos dela (isto é, punições). 

“Não que Deus esteja propriamente irado,”[5] 

ele diz, e então declara que Deus está somente 

“irado conosco em razão de Sua lei violada.”[6] 

Novamente, ele diz, 

“Que Deus deveria ser concebido como irado à maneira dos homens, ou com qualquer espécie de paixão, é um gritante antropomorfismo – tão mal, se não pior do que atribuir a Ele uma forma corpórea. A ira de Deus é um puro ato de Sua vontade segundo a qual Ele irá efetuar e infligir os efeitos da ira.”[7]  

Em resumo, não há nenhuma animosidade pessoal para com qualquer alma na natureza divina (não pode haver visto que Deus é amor), mas Sua perfeita justiça induz a inflição da punição apropriada sobre os impenitentes.

Owen muito bem diz: 

“Deus ama nossas pessoas conforme somos Suas criaturas, se ira conosco [no sentido definido] conforme somos pecadores.”[8] 

Deus, tendo criado todos os homens, necessariamente os ama; de outro modo, Ele estaria envolvido em contradição. Enquanto eles existirem, se no céu ou no inferno, Ele ama os homens como Suas criaturas; mas aqueles que se rebelam contra Ele são, por simples justiça, reservados à Sua prisão eternamente. O juiz humano ideal não nutre nenhuma atitude amarga para com o homem que ele, em estrita justiça, deve mandar à forca; sua ira não é vingativa, mas vingativa em caráter. Daí, não é, como Pink afirma, “uma distinção sem sentido,” que Deus ama o pecador, embora Ele odeia seu pecado.[9] Até John Gill disse: 

“Deus tanto ama todas as Suas criaturas como tais, nem odeia qualquer uma delas, como assim consideradas” (sobre 1Jo 4.8).

O amor é de diferentes espécies. 

Há o amor que está enraizado na relação: assim o Criador ama as Suas criaturas, e pais amam seus filhos. 

Há o amor de complacência: assim o Pai se alegra em Seu Filho perfeito, e em todos que são dedicados a Ele. 

Há também o amor de compaixão: assim o Pai ama o perdido, e o Filho veio buscá-los. 

É, por essa razão, verdadeiro que Deus não ama a todos no mesmo sentido, mas isto não significa que há alguns que Ele não ama em qualquer sentido. Cristo declarou seu amor pelos mornos laodicenses que Ele estava prestes a vomitar (Ap 3.16, 19).

Quando Pink chama a distinção entre o amor de Deus de complacência e Seu amor de compaixão “uma invenção pura e simples,”[10] ele fornece um outro exemplo de mera afirmação de sua parte. A distinção é constantemente evidente no nosso dia-a-dia. Chame este amor de compaixão do que quiser – piedade ou benevolência ou qualquer outra coisa - o uso de diferentes palavras não pode alterar o próprio fato. Mesmo Pink gosta de distinções não verbalmente expressadas na Escritura, tais como a perfeitamente válida: “todos sem distinção, não todos sem exceção” – embora ele às vezes aplica esta uma em passagens onde ela não realmente se aplica.

Eu deveria mencionar aqui a ênfase de Cristo em Deus como um Pai. Não menos do que 73 vezes Ele fala dele simplesmente como “o Pai.” À parte de seus discursos, a designação é usada 48 vezes no Novo Testamento, perfazendo um total de 121. Do número total de passagens no Novo Testamento em que Deus é chamado “Pai” em uma ou outra relação (358) os escritos do apóstolo João sozinho contêm quase metade (169). Agora, o termo “pai” era, entre os judeus, expressivo de forte afeição (Jr 6.26; Am 8.10; Zc 12.10). Conseqüentemente, podemos facilmente entender por que João falou de Deus como amor. Perguntamos: Pode alguém de forma sustentável defender que tal Deus paternal soberanamente restringiria a aplicabilidade da infinitamente valiosa expiação a somente uma parte da raça humana? A pergunta não responde por si mesma?

Que Deus ama a raça inteira em seu estado caído com o amor de compaixão é, sugiro, a mensagem do Evangelho; e que pensar que Ele odeia qualquer ser humano é uma reflexão terrível sobre Ele. Este amor de compaixão foi mostrado na Cruz, onde o Filho encarnado sofreu por todos os membros da família de Adão, como eu objetivo provar das “Escrituras da verdade.”

Notas:

[1] Pink, The Sovereignty of God (1918, reimpresso Grand Rapids, 1959), pp. 245f.
[2] Que Jesus amou Judas é exposto por Alexander Mclaren em seu primeiro sermão Last Sheaves (mensagens dadas na conclusão de seu pastorado de 45 anos em Manchester). No mesmo sermão, “Christ’s Musts,” p. 1, ele também disse: “Ele não poderia ser o Salvador do mundo, a menos que fosse o sacrifício para os pecados do mundo.” Theodore L. Cuyler, pregador presbiteriano no Brooklyn, chamou Mclaren (batista) “de longe o mais excelente pregador na Grã Bretanha” (Recollections of a Long Life, p. 66).
[3] Cf. A. Edersheim, Life and Times of Jesus the Messiah (London 1898), Vol. II, p. 494.
[4] Owen, Works (ed. Goold, 1850), Vol. XII, p. 110.
[5] ibid., p. 533.
[6] ibid., p. 534.
[7] ibid., Vol. X, pp. 451f.
[8] ibid., Vol. XII, p. 534.
[9] Pink, op. cit., p. 246.
[10] ibid., p. 30n.

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