sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Charles Hodge (1797-1878): Por Quem Cristo Morreu?

Nota Introdutória por David Ponter: 

1)  Com Hodge, há essencialmente três questões para serem feitas com referência a natureza e extensão da morte de Cristo. 

I.  Por quem Cristo se engajou como uma garantia a fim de eficazmente salvar?
R:  Pelos eleitos somente. 

II. Por quem Cristo morreu?
R:  Por todos os homens geralmente, mas pelos eleitos especialmente.

III. Por quais pecados Cristo sofreu e suportou punição?
R:  Cristo sofreu e suportou a punição pelos pecados devida a cada homem,  isto é,  todos os homens, mesmo os pecados do mundo todo. 

O leitor deve considerar essas três questões enquanto lê o material  a seguir.

2) Para Hodge, parece que quando a expiação é considerada em referência a pessoas, ele prefere limitá-la a sua "apropriada" intenção e desígnio. Ao fazer isso, ele limita a impetração de Cristo a aqueles a quem ela é eficazmente aplicada.  No entanto, ao considerar a expiação em referência ao pecado imputado, Hodge busca falar em termos de carga da lei contra categorias de pecado. A condenação devida a um homem era a mesma condenação devida ao próximo, e ao próximo, e assim sucessivamente. Portanto, a satisfação realizada por Cristo sendo suficiente para o primeiro homem  é necessariamente suficiente para o segundo, e assim sucessivamente.   Como Hodge diz, Cristo sofreu a condenção da lei sob a qual todos os homens estão.  E dessa maneira, para ele, a expiação é um real sacrificio expiatório e satisfação pelos pecados do mundo.  

Hodge expressamente repudia a idéia de que somente um montante determinado de pecados de um montante determinado de pecadores foi imputado a Cristo.  Porque se esse fosse o caso, teria de conceder que 1) se Deus tivesse eleito mais, a natureza da expiação teria mudado, e 2) não poderia haver a mesma visão com o luteranismo sobre a natureza da expiação.  O efeito disso é que nós temos outra versão de expiação limitada que provavelmente tem sua fonte em Jonathan Edwards e outros teólogos da Nova Inglaterra.  Isso também provavelmente tem como fundo a distinção feita tanto por R L Dabney quanto por WGT Shedd, que a expiação é ilimitada e que a redenção é limitada.

Segue o texto de Charles Hodge:

1.Estado da questão

Trata - se de uma questão entre agostinianos e antiagostinianos. Os primeiros crêem que Deus, havendo escolhido, desde a eternidade, alguns para a vida eterna, teve, na missão e obra de seu filho, uma referência especial à salvação deles. Os segundos, negando que houve tal eleição de uma parte da família humana para a salvação, mantêm que a missão e obra de Cristo teve como alvo a humanidade inteira.

Esta questão, portanto, não diz respeito, em primeiro lugar, à natureza da obra de Cristo. É verdade que, caso se negue que sua obra foi uma satisfação pelo pecado, e se afirme que foi meramente didática, que sua vida, sofrimentos e morte teriam o objetivo de revelar e confirmar a verdade, então seguir - se - ia, naturalmente, que não faria referência a uma classe de homens mais que a outra, ou aos homens mais que aos anjos, a verdade tem por objetivo a iluminação das mentes às quais ela se apresenta. Mas admitindo que a obra de cristo foi uma verdadeira satisfação pelo pecado, seu propósito pode, todavia, ser uma questão aberta. Portanto, os luteranos e reformados, ainda que concordem inteiramente quanto à natureza da expiação, diferem no que tange a seu desígnio. Os primeiros mantêm que ela teve a mesma referência a toda humanidade; os segundos, que teve uma referência especial aos eleitos.

Em segundo lugar, esta questão não prejudica o valor da satisfação de Cristo. Os agostinianos admitem que esse valor é infinito. Seu valor depende da dignidade do sacrifício; e não se pode colocar limite algum à dignidade do Eterno Filho de Deus, que ofereceu a si mesmo por nossos pecados, de maneira que não se pode delinear limite algum ao valor meritório de sua obra. É uma grosseira distorção da doutrina agostiniana pretender que ela ensine que Cristo sofreu certa medida em prol de determinada quantidade de pessoas; que Ele teria sofrido mais se maior fosse o número incluído no propósito da salvação. Esta não é a doutrina de nenhuma igreja sobre a terra, nem jamais o foi. O que foi suficiente por um, foi suficiente por todos. Nada menos que a luz e o calor do sol é suficiente para qualquer planta ou animal. Mas o que é plenamente necessário para cada um é sobejamente suficiente para o incontável número e variedade de plantas e animais que enchem a terra. Tudo o que Cristo fez e sofreu era necessário se apenas uma alma humana fosse objeto da redenção. E nada diferente e nada mais seria necessário se cada filho de Adão fosse salvo por seu sangue. Em terceiro lugar, a questão não tem nada que ver com a adequação da expiação. O que foi adequado para um foi adequado para todos. A justiça de Cristo, o mérito de sua obediência e morte, são coisas necessárias à justificação de cada indivíduo de nossa raça, e portanto necessária a todos. Não é mais adequada para uma pessoa que para outra. Cristo cumpriu as condições do pacto sob o qual foram postos todos os homens. Ele exerceu a obediência exigida de todos, e sofreu a pena na qual todos haviam incorrido; e portanto sua obra é igualmente adequada para todos.

Em quarto lugar, a questão não tem nada que ver com a aplicação real da redenção obtida por Cristo. As partes desta controvérsia estão de acordo em que só uma porção da humanidade esta salva de maneira real, e não toda ela.

De maneira que toda a questão se reduz simplesmente ao propósito de Deus na missão de seu Filho. Qual foi o desígnio da vinda de Cristo ao mundo, ao fazer e sofrer o que Ele realmente fez e sofreu? Foi simplesmente tornar possível a salvação de todos os homens, eliminando os obstáculos que obstruíam a passagem da oferta do perdão e a aceitação dos pecadores? Ou foi especialmente assegurar a salvação de seu próprio povo, ou seja, daqueles que o Pai lhe deu? 

Esta pergunta e respondida de forma afirmativa pelos agostinianos, e em sentido negativo por seus oponentes. É evidente que, se não há eleição de alguns para a vida eterna, a expiação não pode ter referência especial aos eleitos. Deve ter uma referência igual a toda a humanidade. Mas à afirmação de que tem uma referência especial aos eleitos não se segue que não tenha referência alguma aos não – eleitos. Os agostinianos admitem francamente que a morte de Cristo teve uma relação com o homem, com toda a família humana, que não teve com os anjos apóstatas. É a base sobre a qual se oferece a salvação a toda a criatura debaixo do céu que ouve o evangelho; mas não confere autoridade para tal oferta aos anjos apóstatas. Além disso, assegura a toda a raça em geral, e a todas as classes de seres humanos, inumeráveis bênçãos, tanto providenciais quanto religiosas. Naturalmente, teve o desígnio de produzir tais efeitos; e, portanto, Cristo morreu para obtê-los. Em vista dos efeitos que a morte de Cristo produz na relação da humanidade com Deus, tem sido em todos os tempos costumes dos agostinianos dizer que Cristo morreu “sufficienter pro omnibus, efficaciter tantum pro electis”; suficiente para todos, eficaz somente para os eleitos. Portanto, há um sentido no qual Ele morreu por todos, e há um sentido no qual Ele morreu somente pelos eleitos. A simples pergunta é: A morte de Cristo teve uma referência para os eleitos que não teve para os outros homens? Ele veio ao mundo para granjear a salvação dos que lhe foram dados pelo pai, de maneira que os outros efeitos de sua obra são meramente colaterais ao que foi feito para granjear tal propósito?





2. Prova da Doutrina Agostiniana


É evidente que estas perguntas devem ser respondidas em sentido afirmativo:


1. Pela natureza do pacto da redenção.


Admite-se que houve um pacto entre o pai e o filho em relação a salvação dos homens. Admite-se que Cristo veio ao mundo para pôr esse pacto em obra. Portanto, a natureza do pacto decide o objetivo de sua morte.

[….]


Segundo os agostinianos, os homens, por sua queda, sendo deixados em estado de pecado e miséria, poderiam ser sido deixados, como os anjos apóstatas o foram, a perecer em seus pecados. Deus, porém, em sua infinita misericórdia, havendo determinado salvar uma multidão que ninguém poderia enumerar, deu-a a Seu Filho como herança, providenciou para que Ele assumisse a natureza deles e em seu lugar cumprisse toda a justiça. No cumprimento desse plano, Cristo veio ao mundo e obedeceu e sofreu no lugar daqueles que lhe foram dados e para a salvação deles. Esse foi o objetivo concreto de sua missão, e por isso Sua morte teve uma referência a esses que não pode ser feita àqueles que Deus decidiu entregar à justa recompensa de seus pecados. 

Ora, esse plano apenas presume que Deus decidiu, desde a eternidade, fazer o que se cumpriu realmente no tempo. Se é justo que todos os homens deveriam perecer devido a seu pecado, é justo deixar que parte da raça pereça dessa maneira, enquanto a salvação da outra porção é uma questão de favor imerecido. Não se poderá negar que Deus fez um pacto com Seu Filho nesse sentido. Ou seja, Ele prometeu a salvação de Seu povo como recompensa de sua encarnação e sofrimentos; Cristo entrou nesse mundo e sofreu e morreu com base nessa condição, e, havendo cumprido essa condição, tem direito à recompensa prometida. Esses fatos estão declarados na Escritura tão nitidamente, e tantas vezes, que não admitem que sejam postos em dúvida. 

Mas, se esse é o plano de Deus com respeito à salvação dos homens, segue-se necessariamente que a eleição precede à redenção; que Deus determinou quem seria salvo antes de enviar Seu Filho para salvá-los, portanto, Nosso Senhor disse que aqueles que o Pai lhe dera esses com certeza viriam a Ele, e que Ele os ressuscitaria no último dia. Esses fatos bíblicos não podem ser admitidos sem se admitir, ao mesmo tempo, que a morte de Cristo teve uma referência a Seu povo, cuja salvação Ele garantiu, que não teve para outros aos quais Deus, por razões infinitamente sábias, decidiu deixar entregues a si mesmos. Segue-se, pois, da natureza do Pacto da Redenção, tal como se apresenta na Bíblia, que Cristo não morreu igualmente por toda a raça humana, senão que se deu a Si mesmo por Seu povo e pela redenção deles.


2. Argumento Derivado da Doutrina da Eleição


Isso se deduz quase necessariamente com base na doutrina da eleição. Aliás, jamais se negou que Cristo morreu especificamente pelos eleitos até que a própria doutrina da eleição foi ela mesma rejeitada. Agostinho, seguidor e intérprete de Paulo, ensinou que Deus, por Seu mero beneplácito, escolhera alguns para a vida eterna, e afirmou que Cristo veio ao mundo para sofrer e para morrer pela salvação desses. Comprou-os com Seu precioso sangue. Os semi-pelagianos, ao negar a doutrina da eleição, negaram naturalmente que a morte de Cristo tivera referência a uma classe mais do que a outra. 

A Igreja Latina embora mantivesse a doutrina agostiniana da eleição, sustentou também a doutrina agostiniana acerca do desígnio e dos objetos da morte de Cristo. Ao longo da Idade Média, essa foi uma das doutrinas distintivas dos que resistiram ao progresso do partido semi-pelagiano na igreja ocidental. Na época da reforma, os luteranos, até onde se aferraram à primeira doutrina, aferraram-se igualmente à segunda. Os reformados, ao aderir, à doutrina da eleição, mantiveram-se fiéis à sua negação da doutrina de que a morte de Cristo tivera a mesma referência a toda a humanidade. 

Não foi senão até que os Remonstrantes da Holanda sob os ensinos de Armínio, rejeitaram a doutrina da Igreja quanto ao pecado original, à incapacidade do homem caído para o que é espiritualmente bom, à soberania de Deus na eleição e à perseverança dos santos, que foi rejeitada a doutrina de que a obra de Cristo tinha referência especial ao povo de Deus. Portanto, é assunto da história que a doutrina da eleição e a doutrina agostiniana concernente ao desígnio da obra de Cristo se mantinham inseparavelmente unidas. Assim como essa conexão é histórica é igualmente lógica. Uma doutrina pressupõe necessariamente a outra. Se desde a eternidade Deus determinou salvar uma porção da raça humana e não outra, parece ser uma contradição dizer que o plano da salvação tinha a mesma referência a ambas as parte; que o Pai enviou Seu Filho para morrer por aqueles a quem predeterminara não salvar de maneira tão certa e no mesmo sentido em que Ele o deu por aqueles a quem decidira fazer herdeiros da salvação. 


3. As Declarações Expressas das Escrituras


E assim encontramos numerosas passagens nas quais se declara que o desígnio da morte de Cristo é o de salvar Seu povo de seus pecados. Ele não veio meramente para tornar possível a salvação deles, mas para realmente libertá-los da maldição da lei e do poder do pecado. Isso se acha incluso em todas as descrições bíblicas da natureza e do desígnio de Sua obra. Ninguém paga um resgate sem a certeza da libertação daqueles pelos quais ele é pago. Não é um resgate até que realmente redima. E uma oferta não é sacrifício a menos que expie e propicie verdadeiramente. O efeito de um resgate e sacrifício pode certamente ser condicional, porém o cumprimento da condição será assegurado antes de oferecer-se um sacrifício tão caro.

Há também uma grande quantidade de passagens nas quais se declara explicitamente que Cristo deu-Se a Si mesmo por sua Igreja (Ef 5:25); que Ele deu suas vidas pelas ovelhas (Jo 10:15); que deu Sua vida por seus amigos (Jo 15:13); que morreu para reunir em um só rebanho os filhos de Deus que estavam dispersos (Jo 11:52); que foi a Igreja que Ele comprou com Seu sangue (At 20:28).

Quando a humanidade fica dividida em duas classes, a igreja e o mundo, os amigos e os inimigos de Deus, as ovelhas e os cabritos, tudo o que se afirma de maneira distintiva de uma classe é implicitamente negado em relação à outra. Quando se diz que Cristo amou Sua igreja e por Ela se entregou, que Ele deu Sua vida por Suas ovelhas, é óbvio que se diz algo concernente à igreja e às ovelhas que não é verdadeiro em relação aos que não são nem uma coisa nem outra. Quando se diz que um homem trabalha e sacrifica sua saúde e energia pelos seus filhos, nega-se com isso que o motivo que o controla é a mera filantropia, ou que o desígnio que ele tem em vista é o bem da sociedade. Aliás, ele pode ser filantropo e reconhecer o fato de que o bem-estar de seus filhos promoverá o bem-estar da sociedade, mas isso não altera o caso. Permanecerá verdadeiro que o amor por seus filhos é o motivo e seu bem é objetivo. 

É difícil à luz de Efésios 5:25, onde a morte de Cristo é atribuída ao Seu amor por Sua igreja e onde se diz que foi para sua santificação e salvação, acreditar que Ele deu-Se a Si mesmo em igual sentido pelos réprobos e por aqueles aos quais tinha a intenção de salvar. Portanto, cada afirmação de que Cristo morreu por um povo é a negação da doutrina de que Ele morreu igualmente por todos os homens.


4. Argumento Derivado do Amor Especial de Deus


O Amor de Deus às vezes significa sua bondade, da qual todas as criaturas sensíveis são objeto e de cujos benefícios são todos recipientes Às vezes significa seu especial respeito pelos filhos dos homens não só como criaturas racionais, mas também como a progênie daquele que é o Pai dos espíritos de todos os homens. Às vezes significa aquele amor peculiar, misterioso, soberano, incomensurável que excede a todo o conhecimento, do qual são seus objetos Seu próprio povo, a igreja do primogênitos cujos nomes estão arrolados no Céu. Desse amor se ensina:

(1)Que é infinitamente grande.

(2)Que é discriminativo, fixado em alguns, e não em outros dos filhos dos homens. É comparado ao amor de um esposo para com sua esposa, o qual, por sua natureza, é exclusivo.

(3)Que é perfeitamente gratuito e soberano, ou seja, não tem por base o atrativo particular de Seus objetos, mas, como o afeto paternal, no mero fato de que são seus filhos.

(4)Que é imutável.

(5)Que obtém todas as bençãos salvíficas, inclusive todo o bem; de maneira que até mesmo as aflições se encontram entre os frutos designados para o maior bem do sofredor. Ora, é a esse amor, não à bondade geral, nem à mera filantropia que se atribui constantemente o dom de Cristo. 

Nisso consiste o amor, não em que amassemos a Deus, mas em que Ele nos amou e enviou Seu Filho para ser a propiciação por nossos pecados (I Jo 4:10). 

Nisso conhecemos o amor de Deus (ou, por meio desse fato conhecemos o que é o amor), porque Ele (Cristo) deu sua vida por nós (I João 3:16). 

Deus glorifica Seu amor para conosco pelo fato de que, sendo nós ainda pecadores, Cristo morreu por nós (Rm 5:8). 

Ninguém tem maior amor que este, dar a vida por seus amigos (Jo 15:13). Nada pode separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus (Rm 8:35-39). 

Aquele que não poupou a Seu próprio Filho, antes o entregou por todos nós, como não nos dará com Ele também todas as coisas? (Rm 8:32). 

Todo o argumento do apóstolo em Romanos 5:1-11, especialmente ao longo do capítulo oitavo, encontra-se nesse finito e imutável amor de Deus por Seu povo. Sobre essa base, ele argumenta para mostrar a absoluta segurança deles dentro do tempo e por toda a eternidade. Porque Ele os amou de tal maneira, deu seu Filho por Eles; e, havendo feito isso, propôs-se dar-lhes, com toda a certeza, tudo o que é necessário para sua salvação. Nenhum inimigo jamais prevalecerá contra eles; Ninguém jamais poderia separá-los de Seu amor. 

Todo esse argumento é absolutamente irreconciliável com a hipótese de que Cristo morreu igualmente por todos os homens. Sua morte é atribuída ao amor peculiar de Deus por Seu povo e foi a garantia de todos os demais dons salvíficos. Esse amor peculiar de Deus não se fundamenta no fato de que seus objetos são crentes, pois ele os amou quando eram inimigos, quando ainda ímpios, e deu Seu Filho para assegurar que seriam conduzidos à fé, ao arrependimento e à completa restauração à imagem divina. Portanto, ele não pode ser explicado como mera benevolência ou filantropia geral. 

É um amor que garantiu a comunicação de Si mesmo a seus objetos e tornou sua salvação infalível; e, conseqüentemente, não pode ser concedido a todos os homens indiscriminadamente. Essa descrição é tão predominante nas Escrituras, ou seja, que o amor peculiar de Deus por Seu povo, por Sua igreja, pelos eleitos, é a fonte do dom de Cristo, da missão do Espírito Santo e de todas as demais bençãos salvíficas, que não pode ser ignorado em nenhuma visão do plano e propósito da salvação. Cada afirmação das Escrituras deve ser consistente com essa descrição; e por isso é anti-bíblica a teoria que nega essa grande preciosa verdade e que pressupõe que o amor que assegurou o dom do eterno filho de Deus foi mera benevolência que teve todos os homens como seu objeto, muitos dos quais são deixados a perecer.

[…]


A Oferta Universal do Evangelho ¹


Nega-se que o esquema agostiniano explica o fato de que sobre a base da obra de Cristo se possa oferecer a salvação a todo ser humano; e que todos os que ouvem e rejeitam o evangelho são com justiça, condenados por sua incredulidade. Não se pode negar que esses são fatos bíblicos e, se a doutrina agostiniana não fornecer explicação deles, então ela é falsa ou defectiva. Há diferentes razões sobre as quais se presume que a doutrina agostiniana não admite a oferta universal do evangelho. Uma delas é a falsa suposição de que o agostinianismo ensina que a satisfação de Cristo foi em todos os aspectos análoga ao pagamento de dívida, uma satisfação à justiça comutativa ou comercial.

[….]


Às vezes, porém, a objeção é apresentada de forma um tanto distinta. Admitindo-se que a satisfação de Cristo seja em si mesma de valor infinito, como pode valer para os não eleitos se não foi destinada a eles? Não vale para os anjos apóstatas porque não foi destinada a eles; como, pois, pode valer pelos não-eleitos, se não foi destinada a eles? Como pode um resgate, seja qual for seu valor intrínseco, beneficiar àqueles por quem não foi pago? Ao adquirir essa forma a objeção é muito mais ilusória, entretanto, ela é falaz. Ignora a natureza peculiar do caso. Ignora o fato de que toda a humanidade foi posta sob a mesma constituição ou pacto. O que se exigia para salvação de um se exigia para a salvação de todos. Exige-se que todos dêem satisfação às exigências da lei. Nem mais nem menos. Se tais exigências são satisfeitas por um representante ou substituto sua obra está igualmente à disposição de todos. 

O propósito secreto de Deus ao prover tal substituto para o homem não tem nada que ver com a natureza nem com a apropriação de sua obra. Sendo a justiça de Cristo de infinito valor ou mérito, e sendo em sua natureza precisamente do que necessitam todos os homens, ela pode ser oferecida a todos. Portanto, é oferecida aos eleitos e aos não-eleitos; e é oferecida a ambas as classes de maneira condicional. Essa condição é uma sincera aceitação dela como a única base para justificação. Se qualquer um dos eleitos (sendo adultos) deixa de aceitá-la, ele perece. Se qualquer um dos não-eleitos crer, então é salvo.

E o que mais qualquer esquema anti-agostiniano fornece? 

Os defensores de tais esquemas dizem que o desígnio da obra de Cristo foi tornar possível a salvação de todos os homens. Tudo que podem querer dizer com isso é que, se qualquer pessoa (eleito ou não) crer, será salva com base no que Cristo fez. Mas os agostinianos dizem o mesmo. Sua doutrina provê para essa oferta universal de salvação tanto como qualquer outro esquema. Ensina que Deus, ao concretizar a salvação de seu próprio povo fez tudo que é necessário para a salvação de todos os homens, e portanto, que essa oferta pode ser feita, e de fato se fez, no evangelho. 

Se se soçobrar a nave em que estavam a mulher e os filhos de um homem que está em terra, ele poderia tomar uma barca e sair em busca de seu resgate. Seu motivo é o amor por sua família; seu propósito é salvá-los. Mas a barca que ele tem pode ser suficientemente grande para receber todos os ocupantes da nave. Haveria alguma incongruência de que ele lhes ofereça uma chance de escape? Ou demonstraria essa oferta de que não tinha nenhum amor especial por sua própria família, nem desígnio especial para conseguir salvá-los? E se alguns ou todos aqueles aos quais se lhes fizesse o oferecimento recusassem aceitá-lo, alguns por uma razão, outros, por outra; alguns porque não avaliaram o perigo em que se encontravam; outros porque pensaram que poderiam salvar-se com seus próprios recursos; e alguns por inimizade contra o homem de que proveio a oferta, a culpa e insensatez dos mesmos seria tão grande como se o homem não se sentisse movido de modo especial por sua própria família nem por algum propósito especial para levar a bom termo o salvamento dela. 

Ou, se a família de um homem fosse, juntamente com outros, mantida em cativeiro, e movido de amor por ela e com o propósito de redimi-la ele oferecesse um resgate suficiente para a liberdade de todos os cativos, é óbvio que a oferta livremente poderia estender-se a todos com base em tal resgate, ainda que especialmente se destinasse só a parte de seu todo. Ou um homem pode fazer uma festa para seus próprios amigos e a provisão ser tão abundante que abra suas portas de par em par a todos que quiserem entrar. Isso é precisamente o que Deus realmente fez, segundo a doutrina agostiniana. Movido de especial amor por seu povo, e com o desígnio de assegurar a salvação deles, Ele enviou Seu filho para fazer o que justificasse a oferta de salvação a todos os que decidirem aceitá-la. Cristo, pois, não morreu igualmente por todos os homens. Ele deu a vida por suas ovelhas; entregou-se por sua igreja. Mas, em perfeita consistência com isso, Ele fez tudo quanto era necessário, no que diz respeito à satisfação feita à justiça, tudo o que se requer para a salvação de todos os homens. De modo que todos os agostinianos podem anuir-se ao Sínodo de Dort ao dizer: “Ninguém perece por falta de uma expiação”.

[….]

Sendo tal a natureza da satisfação judicial dada por Cristo à lei, sob a qual todos os homens são colocados, pode ser sinceramente oferecida a todos os homens com a garantia de que se crerem, o resultado será sua salvação. Sendo sua obra especialmente designada para a salvação de seu próprio povo, esse fato torna-se certo através das condições do pacto; mas isso é perfeitamente consistente com o fato de ser a base da oferta geral do evangelho. Os luteranos e reformados concordam inteiramente, como já se afirmou, em seus pontos de vista sobre a natureza da satisfação de Cristo e conseqüentemente, no que diz respeito a esse ponto existe o mesmo fundamento para a oferta geral do evangelho segundo amos os esquemas. O que os reformados ou agostinianos sustentam sobre a eleição não afeta a natureza da expiação. Permanece a mesma, quer designada para os eleitos quer para todo o gênero humano. Não deriva sua natureza do propósito secreto de Deus quanto à sua aplicação.


Análise de Certas Passagens das Escrituras


Admitindo, não obstante, que a doutrina agostiniana de que Cristo morreu especialmente por seu próprio povo explica o oferecimento geral do evangelho, como é possível conciliar isso com aquelas passagens nas quais, de uma ou de outra maneira, se ensina que ele morreu por todos? 

Como resposta a esta pergunta, deve-se observar que, em primeiro lugar, o agostinianismo não nega que Cristo morreu por todos. O que ele nega é que ele morreu igualmente, e com o mesmo propósito, por todos. 

Ele morreu por todos: ²

a) para deter a execução imediata da pena da lei sobre toda a nossa raça apóstata; a fim de obter para os homens as inumeráveis bençãos que acompanham sua condição na terra, o que, em um importante sentido, é condição de prova; 

b) e a fim de poder lançar o fundamento para a oferta do perdão e reconciliação com Deus, sob a condição de fé e arrependimento. 

Estas são conseqüências universalmente admitidas de sua satisfação, e portanto todas entram neste mesmo desígnio. Por meio dessa dispensação se faz manifesto a cada mente inteligente no céu e na terra, e aos mesmos que persistem em não arrepender-se, que a perdição dos que perecem é motivada por culpa deles mesmos. Não querem atender a Cristo para terem vida. Recusam aceitá-lo para que reine sobre eles. Ele chama, mas eles não querem responder. Ele diz: “O que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora”. Cada ser humano que atende é salvo. 

Isso é o que se diz quando se fala ou se acha implícito na Escritura que Cristo se entregou a si mesmo como propiciação, não só por nossos pecados, mas pelos do mundo inteiro. Ele foi uma propiciação eficiente pelos pecados de seu povo, e suficiente para o mundo inteiro. Os agostinianos não têm necessidade alguma de afastar-se de seu princípio fundamental, a saber, que é o dever dos teólogos subordinar suas teorias à Bíblia, e não ensinar o que lhes parece certo ou razoável, mas simplesmente o que a Bíblia ensina.

Em segundo lugar, porém, deve-se observar que os termos gerais são empregados indefinidamente, e não inclusivamente. Significam todas as classes ou tipos, e não cada indivíduo. Quando Cristo diz: “Quando for elevado da terra, atrairei a mim todos os homens”, ele quer dizer todos homens de todas as épocas, classes e condição, e não cada pessoa individualmente. Quando Deus prediz que no advento do Messias ele derramaria seu Espírito sobre toda a carne, tudo o que foi predito consiste na efusão geral do Espírito Santo. E quando é dito que todos os homens verão (experimentarão) a salvação de Deus, isso não significa que serão salvos todos os homens individualmente, mas a grande multidão de todas as classes. A mesma observação se aplica ao uso do termo mundo. Significa os homens, o gênero humano, como raça ou ordem de seres. Ninguém hesitaria em chamar o Senhor Jesus de o “Salvator hominum”. Ele é assim saudado e adorado onde quer que se conheça seu nome. Mas ninguém pretende dizer com isso que ele realmente salva todo o gênero humano. O que se quer dizer é que ele é o nosso Salvador, o Salvador dos homens, não dos anjos, não exclusivamente dos judeus, nem ainda somente dos gentios, não apenas dos ricos ou apenas dos pobres, não exclusivamente dos justos, mas também dos publicanos e pecadores. Ele é o Salvador de todos os homens que vêm a ele. E assim, quando ele é chamado de o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, tudo o que se quer dizer é que ele tira o pecado dos homens; que ele veio como oferta pelo pecado, levando não propriamente os seus pecados, mas os pecados dos outros.

Em terceiro lugar, esses termos gerais devem ser sempre entendidos em referência às coisas expressas no contexto. Quando se diz que todas as coisas, o universo, serão postas em sujeição a Cristo, naturalmente se deve entender o universo criado. Em I Coríntios 15:27, Paulo expressamente menciona essa limitação, mas em Hebreus 2:8 ela não é mencionada. Entretanto, ela se acha envolvida tanto em uma passagem quanto na outra. Quando em Romanos 5:18 lemos que, pela justiça de Cristo, o dom gratuito da justificação da vida veia a todos os homens, necessariamente isso se limita a todos os que estão em Cristo, de quem fala o Apóstolo. Assim também em 1 Coríntios 15:22, “Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo” é em ambas as partes da oração certamente não todos, mas todos os que estão em Adão e todos os que estão em Cristo. Isso é ainda mais evidente em Romanos 8:32, das onde se diz que Deus deu seu Filho por todos nós. O “nós” é um referência à classe de pessoas das quais trata todo o capítulo, ou seja, aqueles para quem não há condenação, que são guiados pelo Espírito, por quem Cristo intercede, etc. Efésios 1:10 e Colossenses 1:20 são textos favoritos para os universalistas, pois ensinam que todos no céu e na terra estão unidos a Deus por intermédio de Jesus Cristo. Eles estão certos ao entender essas passagens como que ensinando a salvação de todos os homens, se pelo termo “todos”, nesta conexão, devemos entender todos os seres humanos. Mas por que limitar o termo a todos os homens? Por que não incluir os anjos e ainda as criaturas irracionais? A resposta é: porque a Bíblia ensina que Cristo veio para salvar os homens, não os anjos nem os animais irracionais. Equivale simplesmente a dizer que todos deve limitar-se aos objetos da redenção. Quem são eles, deve ser descoberto não através desses termos gerais, mas através do ensino geral das Escrituras. Esses todos que se acham unidos em um só corpo harmonioso por intermédio de Jesus Cristo são todos aqueles a quem ele veio salvar. A mesma observação se aplica a Hebreus 2:9: Cristo experimentou a “morte por todo homem”. É bem notório que Orígenes entendeu isso como falando de cada criatura; outros, de cada criatura racional; outros, de cada criatura racional apostatada; outros, de cada pessoa; outros, de cada um daqueles que foram dados pelo Pai ao Filho. Como decidiremos qual dessas interpretações é correta? No que diz respeito à mera significação das palavras, tanto é correta uma quanto a outra. É somente pela analogia das Escrituras que o significado do escritor sacro pode ser determinado. Cristo provou a morte em favor de cada um dos objetos da redenção. Se ele veio redimir todos os seres sensíveis criados, ou todas as criaturas racionais, ou todos os homens, ou todos quantos foram dados ao Filho nos concílios da eternidade, quem decide é a Bíblia. A grande maioria das passagens citadas para provar que Cristo morreu igualmente por todos os homens vem sob uma ou outra das classes supramencionadas, e não tem nenhum apoio real sobre a questão concernente ao desígnio de sua morte.

Há outra classe de passagens com as quais, dizem, não se pode conciliar a doutrina agostiniana; as que falam que podem perecer aqueles por quem Cristo morreu. Com referência a essas passagens, pode-se observar, primeiro, que há certo sentido, como já se disse antes, em que Cristo morreu por todos os homens; e, naturalmente, foi designada para que tivesse tal efeito. Portanto, ele morreu suficientemente por todos. Em segundo lugar, essas passagens são, pelo menos em alguns casos, hipotéticas. Quando Paulo exorta os coríntios a não fazer perecer aqueles por quem Cristo morreu, ele está simplesmente exortando-os a não agir egoisticamente em relação àqueles por quem Cristo demonstrou a mais profunda compaixão. Esta passagem não declara nem implica que algum daqueles por quem Cristo morreu realmente perece. Ninguém perecerá dos que ele veio salvar; multidões perecem daqueles aso quais tem sido oferecida a salvação com base em sua morte.


Como Deus, no curso da natureza e na dispensação de sua providência, move-se em majestade imperturbável, pouco se preocupa com a aparente complicação ou mesmo aparente inconsistência de um efeito ou de uma dispensação com a outra; assim o Espírito de Deus, na Bíblia, exibe os propósitos, as verdades e as atividades de Deus, precisamente como são, seguro de que mesmo as mentes finitas por fim serão capazes de ver a consistência de todas as suas revelações. As doutrinas da preordenação, soberania e eficaz controle providencial seguem de mãos dadas com as doutrinas da liberdade e da responsabilidade das criaturas racionais. Ficam fora os que dispensam a lei, a salvação pela fé sem as obras e a absoluta necessidade de vida santa. Na mesma página encontramos a garantia do amor de Deus para com os pecadores e declarações de que ele deseja que todos os homens venha a Ele e vivam, com afirmações explícitas de que Ele determinou deixar as multidões perecer em seus pecados. De igual modo, as declarações expressas de que foi o amor incompreensível e peculiar de Deus por seu próprio povo que o induziu a enviar seu Filho para a redenção deles; que Cristo veio ao mundo com esse objetivo específico; que ele morreu por suas ovelhas; que ele se deu por sua igreja; e que a salvação de todos por quem ele assim se ofereceu tornou-se infalível pelo dom do Espírito, trazendo-lhes a fé e o arrependimento, se entrelaçam com declarações de sua boa vontade para com toda a humanidade, com ofertas de salvação para todo aquele que crer no Filho de Deus, bem como anúncios de ira contra os que rejeitam tais oferecimentos de mercê. Tudo o que temos de fazer é não ignorar nem negar quaisquer desses modos de descrição, mas abrir bem amplamente nossa mente para receber ambos e conciliá-los o melhor que pudermos. Ambos são verdadeiros, em todos os casos supramencionados, vejamos ou não sua consistência.

Recapitulando esta questão, é óbvio que a doutrina de que Cristo morreu igualmente por todos os homens com o propósito de tornar possível a salvação de todos não tem vantagens sobre a doutrina de que ele morreu especialmente por seu próprio povo, e com o propósito de tornar certa a salvação deles. Isso não apresenta uma visão mais elevada do amor de Deus nem do valor da obra de Cristo. Não estabelece uma base mais sólida para a oferta da salvação “a toda criatura”, nem torna mais evidente a justiça da condenação dos que rejeitam o evangelho. São condenados por Deus, pelos anjos e pelos homens, e por sua própria consciência, por recusarem crer que Jesus é o Filho de Deus, Deus manifesto em carne, e conseqüentemente amá-lo, adorá-lo e nele confiar e a ele obedecer. A doutrina oposta, anti agostiniana, tem por base uma compreensão parcial dos fatos do caso. Ignora o amor especial de Deus, claramente revelado, por seu povo peculiar; a união entre Cristo e seus eleitos; o caráter representativo que assumiu como Substituto deles; a eficácia certa de seu sacrifício em virtude do pacto da redenção; e a relação necessária entre o dom de Cristo e o dom do Espírito Santo. Além disso, conduz a perspectivas confusas e inconsistentes do plano da salvação e a teorias antibíblicas e perigosas concernentes à natureza da expiação. Portanto, é um esquema limitado e pobre; enquanto a doutrina ortodoxa é universal e inclusiva; cheia de consolação e de poder espiritual, bem como de justiça para toda a humanidade.

¹título adicionado.
²as letras (a, b) foram adicionadas

Fonte:  Charles Hodge.  Teologia Sistemática. Capítulo VIII.  Editora Hagnos

Nota do blog:  Essa postagem traz o texto quase completo do capítulo 8 da Teologia Sistemática de Charles Hodge.   Algumas partes foram omitidas unicamente porque não vi necessidade das mesmas, ou porque já foram ou serão adicionadas posteriormente em postagens distintas.  

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